Há coisas das quais não nos curamos, e os anos passarão mas não nos curaremos nunca». Em As Pequenas Virtudes, livro que reúne onze narrativas autobiográficas de Natalia Ginzburg (1916-1991) caímos de bruços na vida desta revolucionária escritora italiana, tão próxima de Cesare Pavese, Ítalo Calvino e Carlo Levi.
Embora dispersos cronologicamente, dado que são escritos entre 1944 e 1962 e publicados em diferentes jornais e revistas, estes textos permitem-nos acompanhar passo a passo os momentos mais marcantes de Ginzburg. A sua adolescência, as questões de género, a morte do marido Leone Ginzburg pela polícia fascista de Mussolini, os diferentes exílios, quer no Sul de Itália, quer em Inglaterra, onde esteve nos anos 60, o tempo em que esteve presa, a labuta da maternidade, a experiência dura enquanto mãe e escritora, o pós-guerra, a sua relação visceral e inabalável com as palavras.
«Quando escrevo histórias sinto-me como quem está na sua terra, em ruas que conhece desde a infância e entre as paredes e as árvores que são suas». Mas as primeiras histórias que escreveu e que viu serem publicadas tiveram cunhado outro nome que não o seu. Esse nome era Alessandra Torniparte. Um nome incapaz de denunciar qualquer gene judeu.
Nascida em Palermo numa família de intelectuais, Natalia acabou por viver grande parte da sua vida em Turim, para onde o pai, professor universitário de Anatomia foi transferido em 1919. De ascendência judia pelo lado paterno (Levi), Ginzburg viu também o seu pai, tios e irmãos serem perseguidos e acusados graças à sua resistência ao fascismo. Mas Ginzburg não teve uma educação religiosa. Embora a sua mãe fosse católica e o pai judeu, Ginzburg teve uma educação laica, tal como os seus irmãos, e desde cedo tomou a literatura como seu principal ofício. Um ofício áspero, mas ao qual desde cedo se sentiu destinada.
Em O Meu Ofício, ensaio datado de 1949, acompanhamos o dissertar acerca das diferentes fases por que passou enquanto escritora. E tão depressa ouvimo-la confessar que muitas vezes chegou a desejar escrever tal e qual como um homem, como quanto os filhos e as rotinas maternais lhe ferraram os planos.
«A ironia e a maldade pareciam-me armas muito importantes nas minhas mãos; parecia-me que me serviam para escrever como um homem, porque então eu desejava terrivelmente escrever como um homem, horrorizava-me que se compreendesse que as coisas que eu escrevia eram de uma mulher».
Esta foi uma das diversas fases de Ginszburg enquanto escritora, porque depois desta, a autora de Família e Burguesia assume que passou por uma altura difícil em que nada lhe despertava interesse. Nenhum futuro parecia grunhir qualquer pequena virtude que fosse. Nada parecia resgatá-la dos tumores da indiferença. «O mundo calava-se para mim. Já não encontrava palavras para o descrever, já não tinha palavras que me dessem muito prazer. Já não possuía nada. Tentava recordar o espelho, mas até ele estava morto em mim. Trazia dentro de mim um carregamento de coisas embalsamadas, rostos mudos e palavras de cinza, paisagens e vozes e gestos que não vibravam, que passavam mortos no meu coração».
A metáfora do espelho é uma passagem que merece a atenção do leitor. A escritora recorre a esta imagem em O Meu Ofício para recordar o tempo em que usava um caderno onde apontava todos os pormenores que lhe poderiam servir de plataforma para uma futura história. Apontava frases, descrições soltas, rasgos de inspiração, mas depois chegou à conclusão que de nada lhe serviriam algum dia. Percebeu que esse caderno não passava de um ‘mausoléu’ de frases empalhadas e então realizou que no seu ofício não existia economia possível. Não existiam juros, garantias nem créditos mal parados porque mais tarde ou mais cedo essas miragens, esses pormenores diluir-se-iam dentro de si e não mais fariam sentido dentro de qualquer outra personagem ou cenário. «Quando pensamos ‘este apontamento é bom e não quero gastá-lo na história que estou a escrever agora, já aqui tenho muitas coisas boas, vou reservá-lo para outra história que hei-de escrever’, acontece que esse apontamento se cristaliza dentro de nós e deixamos de poder utilizá-lo. Quando se escreve uma história, deve introduzir-se tudo o que de melhor se possui e viu, tudo o que de melhor se colheu na vida».
Foi nessa altura, enquanto ainda tomava notas nesse caderno, que ao escrever uma série de curtas narrativas viu passar à sua frente na rua um grande espelho verde com uma moldura dourada. Esse espelho era a imagem da sua própria felicidade, da sua própria emancipação e durante um largo tempo Ginzburg imaginou que o pudesse imprimir em algum texto. «(…) durante muito tempo recordar a carreta com o espelho em cima dava-me muita vontade de escrever. Mas nunca consegui pô-lo fosse em que lugar fosse, e a certa altura dei-me conta de que morrera em mim. E, no entanto, foi muito importante». Mas porque terá sido importante? Porque será importante que certos espelhos morram em nós? Que certos versos, que certas auroras morram em nós?
Não temos que viver aflitos em recuperar tudo o que perdemos, mas Ginzburg explica-nos no tom confessional que percorre cada linha desta coletânea, que esse espelho tão exuberante e vistoso de moldura dourada foi crucial para lhe oferecer novos horizontes, «talvez a faculdade de olhar uma realidade mais gloriosa e resplandecente, uma realidade mais feliz (…)». Tudo porque até então a escritora só se focava em imagens que no fundo desprezava. Havia algo de grotesco nas suas narrativas. Ou eram personagens estranhas pautadas por alguma malignidade de caráter ou eram disformes ou caracterizadas por algum tique ou vício repugnante. No fundo, este espelho funcionou como uma espécie de bote de resgate ao qual a escritora recorreria de tempos em tempos. O espelho era importante para varrer, para fazer resvalar, talvez para lhe dar alguma coragem.
Mas depois desta fase desanimadora em que escrever se tornava algo mecânico e desenxabido vieram os filhos e o ‘ofício’ foi-se degradando continuamente. Degradando no sentido de lhe causar uma certa angústia. Porque as papas de aveia e de cevada, o molho de tomate e a sêmola tomaram conta de tudo. Dos seus dias e noites, dos personagens, dos enredos, das palavras. «E depois nasceram os filhos, e eu a princípio quando eles eram muito pequenos não conseguia compreender como se poderia escrever quando se tinha filhos. Não compreendia como me seria possível separar-me deles para seguir a personagem de uma história. Comecei a desprezar o meu ofício».
Um ofício que «não é nunca uma consolação ou uma diversão», mas que desde sempre por si foi aguçado pela íris feminina. Uma íris que em diferentes matizes e filamentos se foca com precisão e astúcia no espaço doméstico. É que é geralmente este o cosmos onde as suas ações se desenrolam. Vejamos o exemplo de Léxico Familiar (que em 1963 ganhou o prémio Lo Strega), Todos os Nossos Ontens (1952, editado pela Cotovia) ou A Família Manzoni (1983).
Mas só durante algum tempo é que os filhos a empurraram para longe da escrita. Felizmente, pouco a pouco, Ginzburg soube manter a distância certa entre ambos. Houve uma altura, ainda com eles muito pequenos (porque poucos anos depois teve que os entregar aos cuidados da sua mãe), aquando do seu exílio numa aldeia no Sul de Itália, que sentiu não mais desejar escrever como um homem. «Agora já não desejava tanto escrever como um homem, porque tivera os meus filhos, e tinha a impressão de saber muitas coisas sobre o sumo de tomate, e ainda que as não pusesse na história, era apesar de tudo útil para o meu ofício sabê-las: de um modo misterioso e remoto também isso era útil para o meu ofício. Parecia-me que as mulheres sabiam sobre os seus filhos coisas que um homem nunca pode saber».
São impressões honestas como esta, de tal maneira lúcidas, ainda que por vezes muitíssimo misteriosas, que levaram Lara Feigel, crítica no The Guardian a escrever que ao ler Ginzburg estamos como que a ler uma mentora, uma conselheira. Na verdade, são impressões que testemunham a consciência plena do que é o sacrifício, a desordem, a irresolução, a dor, a realidade. Em O Filho Do Homem escreveu: «Conhecemos a realidade no seu rosto mais tétrico. Já não nos repele. Há ainda quem se queixe do facto de os escritores se servirem de uma linguagem amarga e violenta, contarem coisas duras e tristes, apresentarem a realidade nos seus termos mais desolados. Não podemos mentir nos livros e não podemos mentir em nenhuma das coisas que fazemos».
Habituada desde criança a ser mandada calar pelos quatro irmãos mais velhos, vamo-nos apercebendo no discorrer destes onze textos que no olhar de Ginzburg paira uma inquietação caudalosa, um abismo tímido, uma espécie de desassossego doce, mas é precisamente a esse olhar que nos vamos querer aliar a cada passagem. Porque é um olhar cristalino de uma mulher que escreve, que se dilacera, que se impõe, que não se deixa turvar. Porque facilmente nos vemos ressoar na sua melancolia, no embalo coerente da sua memória.
«Entre nós e as personagens que então inventamos, que a nossa fantasia enlanguescida consegue inventar apesar de tudo, nasce uma relação particular, afetuosa e como que maternal, uma relação quente e húmida de lágrimas, de uma intimidade carnal sufocante. Temos raízes profundas e dolorosas em cada ser e em cada coisa do mundo, do mundo feito e cheio de ecos e de sussurros e de sombras, a que nos liga uma piedade devota e apaixonada. O nosso risco é então naufragarmos num lago escuro de água morta e estagnada, para ele arrastando connosco as criaturas do nosso pensamento deixando-as perecer connosco no sorvedouro morno e escuro, entre ratos mortos e flores putrefactas».
Por mais que Ginzburg em grande parte desta coletânea se foque no seu ofício enquanto escritora e mãe, estes ensaios que começam no Inverno nos Abruzos (1944), aldeia italiana onde ela e o marido estiveram exilados nos anos 40, vão muito mais além da parentalidade. Basta pensarmos em Os Sapatos Rotos, ensaio escrito a partir da vivência com outra mulher igualmente só na capital do país italiano do pós segunda grande guerra ou em Retrato de Um Amigo, narrativa onde revisita a amizade com Pavese. «Os seus versos ressoam nos nossos ouvidos quando regressa à cidade ou quando pensamos nela; e já não sabemos sequer se os versos são belos, de tal modo fazem parte de nós, de tal modo refletem para nós a imagem da nossa juventude, dos dias doravante muito longínquos em que pela primeira vez os ouvimos de viva voz ao nosso amigo: e descobrimos com profunda estupefação, que também da nossa cidade cinzenta, pesada e impo ética se podia fazer poesia».
Este talvez seja de todos, o mais assombroso dos ensaios. É um hino estrondoso à amizade. No verão em que Pavese se matou Ginzburg não estava em Turim. Este facto também é referido em Léxico Familiar. É uma realidade que a atinge e pela sua torrencial espontaneidade também atingirá o leitor.
Editado pela Relógio D’Água em junho do presente ano, como o romance acima referido, lemos na belíssima introdução de Rachel Cusk que «Entre os muitos temas tocados nestes ensaios – guerra, relações, perda, crença, vida domestica, arte -, a questão da feminidade é abordada em termos surpreendentemente eufemísticos e reservados. A autora ocupa os papéis sucessivos de filha, mulher, mãe e companheira, sem nunca permitir que esses papéis subsumam a sua perspetiva».
Não há dúvida que a feminidade é uma espécie de fermento natural anticonformista que faz a todo o momento levedar qualquer assunto na sua obra. A casa, os filhos, a carreira, a religião, a política, o sofrimento, a pobreza, a educação. Pela feminidade os seus leitores conseguirão habitar outros recantos do fosso demasiado febril e tresmalhado do quotidiano, da família, dos instintos.
«Toda a vida não soubemos ser senão senhores ou escravos: mas nesse nosso momento secreto, nesse momento de pleno equilíbrio, soubemos que não existe na Terra verdadeira soberania nem verdadeira escravidão», escreve em Relações Humanas (1953). Na verdade, toda a vida esperamos pela pessoa certa. Pelo curso, pelo emprego certo. Toda a vida esperamos que nos deem um nome certo. Toda a vida desejamos caçar e ser caçados. Pela pessoa certa, pelo nome certo. Mas, «De repente apercebemo-nos de que nos enganámos, não era aquela a pessoa certa, somos-lhe indiferentes e não sofremos com isso porque não temos tempo de sofrer (…)». De repente apercebemo-nos, talvez demasiado tarde, que nos tornámos inidentificáveis com qualquer virtude, tempo, pessoa ou nome pelo qual toda a vida tanto desejámos ser caçados.