Jorge Roque. “Queria fazer bom uso da minha morte”

Jorge Roque. “Queria fazer bom uso da minha morte”


Um livro como “Tresmalhado”, de Jorge Roque, não é exemplo de nada. Nem para a literatura. Nada lhe serve. Muito menos uma qualquer redenção estética


Com a inteligência desfeita, a encher a boca de pedras, a pegar na pele largada do idioma que se arrasta mais à frente com televisões ligadas ao fundo, na sua emissão incessante. Condenado à política, a própria consciência produz o seu veneno, vaga entre “silêncios vigilantes” e sujeita a essa “escura lei” que faz o dia entrar pela noite, destrói as razões sombrias, e, assim, o discurso já não sabe dar a volta sobre si, é um erro pacífico que conduz à atrofia. Resta encher a boca de pedras, cuspir as palavras como dentes depois de levantar o rosto apanhando o murro em cheio, sorrindo em volta todo sujo de sangue, camisa e a pele, viver manchado, a pele marcada a fundo de toda a agressão.

Jorge Roque meteu-se nesse frente-a-frente, e os seus poemas servem reflexos inteiros do corpo, o cheiro, o baque, cada passo servido ao chão com o peso todo da derrota, avançando por essa sua solidão armada com espinhos interiores um corpo que já meio se enterra e nos leva, coveiro de todo uma época. Tem-se visto como vai bem a poesia de mão com o horrorzinho para o teatro das ironias, não faltam os artistas da dor com a rispidez panfletária e os ritmos de caixa, até com certa verve e efusão lírica, abotoados até ao queixo na farda constante dos seus plurais. Abençoados os nossos socialistas do verso, empertigados nessa tão imoderada confiança de que o mundo sempre dá as suas voltas.

Um livro como “Tresmalhado” não é exemplo de nada. Nem para a literatura. Nada lhe serve, muito menos uma qualquer redenção estética. Drieu la Rochelle escreveu que o suicídio surgirá no fim como “recurso dos homens com a mola roída pela ferrugem, a ferrugem do quotidiano. Eles nasceram para actuar mas retardaram a acção, e a acção volta por ricochete a atingi-los. O suicídio é um acto, o acto dos que não conseguiram levar outros até ao fim.” Há algo aqui de um suicídio que nos obriga a partilhá-lo, já não como solução, mas uma condenação de que não sabemos como isentar-nos. “Sempre vivi num reduto, sempre fui uma míngua de terra encostada a um muro. Mas o reduto estreita-se, o muro já mal me deixa mover nesse espaço exíguo que foi quanto me habituei a esperar da vida e era, visto de agora, um lugar feliz, uma cara onde o sorriso cabia. Juventude gasta, esperanças esmagadas contra o rodado dos dias, crenças sem chão já que as suporte (…). Fui até ao último passo, ao último metro, mesmo que quisesse, faltar-me-ia o acto, o gesto. E a verdade é que não quero, ou querendo com um resto que não sei onde vou buscar, onde existe ainda, é cada vais mais plausível não querer”.