Para Van Damme o inferno é canja, o pior é aguentar o paraíso

Para Van Damme o inferno é canja, o pior é aguentar o paraíso


Está com 60 anos, e o pão que o diabo amassou nunca lhe tirou o apetite. Foi uma das grandes estrelas de acção dos anos 80 e 90, ainda que tenha sido sempre o vira-lata, o rapaz de olhos tristes que preferia que não o obrigassem a erguer os punhos. Mas sendo a vida o…


“As almas também precisam de levar porrada”, avisou faz muito Céline, um mal-encarado autor francês que, se obrigado a escolher, o mais certo é que preferisse Jean-Claude Van Damme a qualquer outro dos protagonistas de fitas de acção que dominaram as bilheteiras nas décadas de 80 e 90, e isto quando importava mais a definição dos músculos, uma cara de meter ao medo ao susto, quando ninguém contava que as coisas pudessem ser resolvidas de forma tranquila, como se espera de adultos, mas que, sem nem abrir a boca, à mínima bronca, começassem a voar cadeiras, e, em vez de um golpe certeiro, desses que apanham o nariz por baixo, esmagam a cana e fazem o adversário sufocar no próprio sangue, o ideal era que a coisa não acabasse antes que a estrela tomasse balanço e desse um rotativo no ar, acabando com uma patada na fuça do opositor, que, por essa altura, tanto podia desfalecer do golpe como de comoção, deslumbrado com a proeza atlética de quem tinha pela frente.

Seja como for, se aos 60 anos Van Damme está a protagonizar um dos mais improváveis regressos à ribalta na impiedosa indústria cinematográfica norte-americana, isso deve-se menos à sua invejável condição física (e não apenas para um homem da sua idade, mas de qualquer idade), mas sim à forma como hoje a sua figura enverga menos as cicatrizes dos abusos a que submeteu o seu corpo, e mais aquelas que sofreu na alma, que surge agora à superfície, toda surrada, ao ponto de emergir também um certo estado de graça, com o homem que, na altura em que tentava vingar em Hollywood, se apelidou a si mesmo de “os músculos de Bruxelas”, a mostrar-se por fim bem mais à vontade na sua própria pele, disposto a zombar de si mesmo, a virar do avesso a megalomania que em tempos o consumiu, para se juntar à animada tragicomédia que tão melhor representa a existência de todos nós. 

Sylvester Stallone fez 75 anos no início de Julho, no final do mesmo mês, Arnold Schwarzenegger soprou menos uma vela. A sua espectacular rivalidade quase não deixava margem para mais contendores num período em que o excesso de testosterona estava longe de ser encarado com um risco, e o termo “masculinidade tóxica” começado a fazer as rondas. Todos os que surgiram depois, tiveram de trazer algo para a mesa, uma carta fora do baralho, e Van Damme, sendo baixote por comparação (com o seu 1,77m de altura), trouxe uma certa graciosidade às cenas de acção, tendo o seu estilo de luta beneficiado dos cinco anos em que se dedicou à prática do balé. Por outro lado, apesar da sua propensão para exagerar os seus feitos, para engrandecer o seu mito, o apelo de Van Damme sempre esteve na forma como parecia partir de uma posição de desvantagem, e, de resto, uma constante na sua vida foi a sua capacidade para comer porrada da grossa, e depois, lambendo o chão, passando pelo desespero e pelo inferno, renascer nas asas de uma fúria que lembrava todos os pobres coitados deste mundo de que um momento de ilusão ainda lhes pode valer quando o mundo já não espera nada deles. Além disso, este belga parecia ter algo que apelava mais ao público feminino, e com a sua capacidade para explorar um lado mais vulnerável, provou que podia ser o melhor dos heróis de segunda categoria. Com aquele maxilar e o queixo quadrado bom para apanhar, com os abdominais bem definidos, e um sotaque que ajudava a dar a imagem de um tipo tímido, juntamento com aqueles olhos tristes, um doce modo cabisbaixo que convencia sempre que era instigado a levantar os punhos e passar às vias de facto. Todos sabíamos do poder de explosão de que ele era capaz, e quanto mais se recusava a envolver-se noutra rixa, mais espelhava o desgaste que todos sentimos perante um mundo onde, por vezes, a única medida de justiça que dele se consegue retirar é dando uma sova descomunal nalgum cretino.

Mas os anos passaram, e depois de alguns êxitos estrondosos, o astro de Van Damme entrou num declínio acentuado, com os problemas da sua vida pessoal a revelarem como ele podia ser o seu principal inimigo, desde os problemas com a cocaína a uma série de divórcios dispendiosos, enquanto a sua imagem como o mais sensível dos durões era substituída pela de mais outro desses actores mimados que, depois de o sucesso lhes subir à cabeça, atrapalham a produção dos próprios filmes com as suas birras e caprichos. Aos poucos, já nem aqueles que crescemos a ver os seus filmes tão pirosos quanto honestos estávamos muito interessados em saber quão baixo ele podia descer, isto até ele mesmo ter abandonado as suas pretensões de ser visto como um dos grandes heróis de acção de todos os tempos, permitindo que o humor e a paródia de si mesmo o resgatassem ao limbo de uma sucessão de filmes que já nem asseguravam a estreia nas salas de cinema, e foi assim que, através da humilhação, uma vez mais Van Damme voltou a representar de forma honesta a condição de todos nós, surgindo agora como uma antiga estrela de cinema, envelhecida, sem rumo, achacada por esses restos fumegantes da glória de outros tempos, que o leva a ser reconhecido na rua, embora muitas vezes o confundam com algum outro astro caído em desgraça.

Nesta lazaresca recondução à fama, foi crucial uma fita belga de baixo orçamento que saiu em 2008, com o título “JCVD”, a sigla para o nome de Van Damme. Foi então que nasceu a ideia de fazê-lo assumir o personagem em que se tornou, obrigá-lo a regressar às suas raízes, e a reflectir de forma irónica sobre o lado absurdo do género que o tornou famoso, e também sobre a mitificação da masculinidade, e as fragilidades que essa representação esconde. Depois de décadas em que eram os outros a infligir-lhe os golpes, ele livrou-se do intermediário e serviu a si mesmo a maior das trepas, expondo-se da forma mais crua, num desempenho bastante cáustico que culmina num monólogo final: “Não tenho culpa de o meu sonho ter sido tornar-me um astro. Quando se está no topo, só se quer ascender mais ainda. Quando o sonho se tornou realidade, dei-me conta de que, afinal, tudo aquilo não significava nada. Ainda hoje me pergunto o que fiz eu neste planeta. Nada. Não fiz nada.”

A crítica, por fim, rendeu-se-lhe, e Richard Corliss, na revista Time, exaltou o seu desempenho como o segundo melhor do ano, depois do Joker de Heath Ledger, em “O Cavaleiro das Trevas”. E quase uma década depois, em 2017, estreava na Amazon uma série que expandia esse registo elegante que combina elementos da homenagem e da sátira para criar um enegenhoso drama. O criador de “Jean-Claude Van Johnson”, Dave Callaham, era um desses miúdos que, tendo crescido como tantos a aturar os abusos de alguns rufias e não se revendo na genérica e colossal estrela de acção, tinham crescido a admirar Van Damme. “Ele era o meu actor preferido quando eu era miúdo, e por isso queria focar os altos e baixos da carreira dele, e fazer algo que envolvesse todos esses mundos, quem ele é e o que ele representa para a cultura popular”, disse Callaham, que antes assinara já os guiões de “Godzilla”, e do filme produzido, realizado e protagonizado por Sly Stallone, “The Expandables”, no qual lidera um elenco que conta uma catrefada de antigas e novas estrelas dos filmes de acção, muitos deles em declínio, como Dolph Lundgren, Wesley Snipes ou até Mel Gibson. Lançado em 2010, o filme obteve um grande sucesso de bilheteira, e a sequela, dois anos depois, contava também com Van Damme no elenco.

Embora a série não tenha sido propriamente um êxito, ficando por uma temporada de apenas seis episódios, foi a primeira vez em décadas que alguma produção com Van Damme no papel principal conseguiu alcançar uma audiência mundial, tendo sido exibida em mais de 200 países e territórios. Numa entrevista ao The New York Times enquanto aguardava ainda a reacção à série, o actor contou que quando deu cabo da fama que lhe granjearam filmes como “Timecop” (1994), e isto por coisas estúpidas, deu por si no período mais difícil da sua vida, em que durante uma década nenhum dos seus filmes chegou às salas de cinema. E foi então que fez uma promessa à mãe: “Antes de morreres, vou garantir que estarei de volta ao grande ecrã, e vou levar-te a uma grande estreia em Paris”. O actor concluía dizendo que, embora não sendo uma produção para o cinema, a série teve uma festa de lançamento em Paris, e ele pôde cumprir o que prometera à mãe, que tinha então 83 anos.

Em poucos anos, devido aos constrangimentos provocados pela pandemia, as regras do jogo mudaram, e com milhões de pessoas confinadas e a dependerem dos serviços de streaming para se distraírem de uma realidade em que as grandes ameaças são cada vez mais difusas e o mais difícil é perceber onde traçar a linha entre o bem e o mal, na Netflix um dos filmes mais vistos no ano passado era um remake do clássico de Van Damme “Sudden Death” (1995). E perante esses sinais de vida, aquela plataforma propôs ao belga um projecto intitulado “The Last Mercenary”, que estreou no final de Julho e que ocupa a quinta posição entre os filmes mais vistos em Portugal, o que tem acontecido em tantos outros países, demonstrando que o público continua a torcer por Van Damme. 

Realizado por David Charhon, o filme embrulha cenas de acção aparatosas com uma boa dose de humor, e ainda que seja improvável que consiga, por si só, fazer pelo actor o que fizeram os filmes assinados por grandes realizadores de acção de Hong Kong no século passado, é um passo destemido para que Van Damme não fique reduzido à revisitação constante dos seus demónios pessoais, num pungente drama em que aqueles que na sua infância, ao assistir aos seus filmes, sonhavam espancar os rufias que os maltratavam no recreio da escola, para agora obterem um outro tipo de satisfação ao atingir a meia-idade, vendo como mesmo o seu herói ficou de rastos, traído pelos sonhos e desprezado pelas audiências. De qualquer modo, haja ou não uma segunda vida para Van Damme como herói da acção já entradote, além da impressionante forma física que ele exibe no filme, realizando a espargata uma e outra vez, além dos seus icónicos rotativos, mostra estar ainda apto a distribuir um porradão de meia-noite por gente com menos de metade da sua idade. E a prova de que a sua personagem e o seu legado têm resistido a tudo, tendo marcado profundamente o imaginário popular, está no retumbante sucesso do spot publicitário que foi para o ar em 2015 no qual aparece a fazer a icónica espargata no ar apoiado em dois camiões Volvo. (O vídeo no YouTube soma actualmente mais de 110 milhões de visualizações.) Nada mau para um miúdo franzino nascido em 1960, numa comuna da região de Bruxelas, na Bélgica. E é revelador o facto de, com uma carreira de quatro décadas a enviar gente para o hospital (na ficção e, por vezes, na vida real), em grande medida Van Damme nunca se livrou do fantasma do pai que, segundo reza a lenda, o inscreveu nas aulas de karaté porque não suportava o facto de ter um filho lingrinhas que não fazia mal a uma mosca.

O que veio depois oferece matéria para um filme ou uma série que já dispensará o actor, aproveitando-se do momento em que, ao atingir a maioridade, este trocou os óculos de fundo de garrafa por umas lentes de contacto e abriu uma academia em Bruxelas, que foi baptizada com um nome que deixava já muito claro o horizonte com o qual sonhava: California Gym. Cansado dos céus cinzentos da capital belga, ele enfiava-se no cinema para ter uma impressão do que seria viver sob um sol que, não só aquece, mas dá um tom mais vivo à pele, e já então prometia à mãe que um dia iria atingir o estrelato em Hollywood. A mãe, por seu lado, não parecia levar a mal os sonhos de grandeza do filho e apenas lhe pedia que não repetisse isso em frente pai, que o mais certo é que perdesse as estribeiras com as baboseiras de Jean-Claude.

Tinha 22 anos, dinheiro suficiente para o bilhete de avião e para se aguentar algumas semanas em Hollywood, quando deixou tudo, incluindo a primeira mulher, para zarpar em perseguição a esses sonhos. Foi para lá sem plano B, e acabou a entregar pizzas, a limpar tapetes, entre outros biscates, antes de se empregar como motorista de limusine por uns tempos, para depois sobreviver como instrutor de aeróbica. Durante um bom período, dormia no carro, e nos tempos livres chegava a passar horas em frente às mansões dos executivos da La La Land, tentando apanhá-los a sair de casa, e deixando pendurado nos para-brisas o currículo onde já aparecia o apelido que cunhara para si mesmo: “os músculos de Bruxelas”. Contou que a mansão de Stallone era uma dessas onde costumava estacionar o carro, aguardando durante horas na esperança de lhes mostrar aquilo de que era capaz. E de tanto penar, lá foi conseguindo umas migalhas, papéis desses que vêm no final dos créditos, como o do “lutador de karaté gay” no filme “Monaco Forever”. 

De tanto insistir, acabaria por furar, depois de ter perseguido Menahem Golam, o presidente da produtora Canon, de série B, responsável por dar um impulso decisivo à carreira de Chuck Norris. Van Damme acabou por impressiona-lo com um pontapé que sobrevoou a cabeça do produtor, que tinha 1,89m. Golam aceitou recebê-lo no dia seguinte. “Esperei sete horas. Contei-lhe que o meu pai tinha vergonha de mim por ter deixado uma vida boa na Bélgica para vir para os EUA. Ofereci-me para trabalhar de graça. Tirei a camisa, puxei duas cadeiras e pus-me em cima delas, apoiando-me para fazer a espargata no ar”, recordaria anos mais tarde. E foi com este tipo de audácia que conseguiu que o produtor investisse nele, enviando-o para Hong Kong, onde foi filmado “Bloodsport” (1988), filme que, com um orçamento de um milhão de euros, multiplicou por 30 o investimento e provocou sensação. Contudo, por mais sucesso que fizesse, desde cedo a crítica tomou Van Damme de ponta, e logo nesse primeiro filme houve quem tenha escrito que a sua interpretação era tão sofrível que dava a sensação de se estar perante “uma salamandra lobotomizada”. 

Nesta história, ninguém se ri por último. Mas Van Damme conseguiu fazer tudo aquilo a que se propôs, e tornou-se uma espécie de ícone global nesse plano que desmascara a fantasia que é o sucesso, tendo conquistado audiências com uma filmografia de contrafacção, protagonizando versões baratas de “Rocky”, de “Exterminador Implacável” ou de “Assalto ao Arranha Céus”, como “Kickboxer”, “Cyborg” ou “Lionheart”. O belga já então corria mais riscos, e expunha-se ao ridículo quando Stallone e Schwarzenegger ou Bruce Willis estudavam os guiões que lhes chegavam e reescreviam tudo o que pudesse manchar a sua impecável folha de serviços, empenhados em refundar a mitologia ianque com variações modernas das fitas de faroeste. Mas se Van Damme era o palhaço pobre neste circo, não demorou a beneficiar de um certo culto entre o público gay, e soube gozar desses suspiros que provocava, viessem eles de mulheres ou homens, não recusando aparecer em pelota nos filmes, e, em 1993, foi capa da Playgirl, prometendo revelar “os seus segredos de sedução”, tendo conseguido três indicações consecutivas ao prémio MTV de actor mais desejável. Chegou até a aparecer num episódio da série “Friends” em que se interpretava a si mesmo, gabando-se de ser capaz de esmagar nozes com as nádegas, enquanto Rachel e Monica se digladiavam para ver qual delas o sacava.

Em meados da década de 1990, Van Damme tinha a vida feita num oito. A fama deu-lhe a volta à cabeça, e a cocaína veio ajudar à festa. Confessou que chegava a gastar 8.500 euros por dia com a branca, e que chegava a cheirar 10 gramas por dia: eram duas filas de cada vez e “do tamanho da rodovia entre Los Angeles e Tijuana”. Admitiu que estava tão entupido de cocaína durante as filmagens de “Knock Off” (1998) que nem se lembrava de ter trabalhado nele. “Fazia-o por luxúria, pelo sexo, para continuar a aguentar aquilo tudo. Parei de treinar, perdi peso, perdi os músculos. Destruí o corpo que tinha criado”, explicou mais tarde.

Esbanjou tudo, arranjou confusões com toda a gente, teve um divórcio terrivelmente litigioso com Darcy LaPier, por quem tinha abandonado a mãe dos seus dois filhos, Gladys Portugues, com quem viria depois a reconciliar-se, voltando a casar. Quando LaPier estava grávida dele, teve um caso com Kylie Minogue, enquanto filmavam “Street Fighter” na Tailândia. Na altura do divórcio, LaPier veio acusá-lo de violência doméstica, dizendo que lhe tinha infligido um golpe nos implantes de silicone, o que a obrigou a uma nova operação para os devolver ao seu lugar. Ele garantia que não, que nunca lhe tocou, que se o tivesse feito a tinha matado. Ela conseguiu que o tribunal lhe da Califórnia o obrigasse a pagar-lhe uma pensão de alimentos de 100 mil dólares mensais, o que, há época, foi um dos valores mais altos e deixou vários homens em Hollywood a fazer contas à vida. Entretanto, Van Damme passou pela reabilitação, foi diagnosticado com distúrbio bipolar e transtorno maníaco-depressivo… Parecia haver um fundo falso no poço, que, só para ele, lhe mostrou novas profundidas. O nosso herói de infância estava na maior merda. Nada que não tenhamos visto nos filmes. No fim, já sabemos como a coisa acaba. Todo desfeito, o tipo arranja forçar não se sabe onde, e quem estava a rir-se dele acaba a apanhar os dentes do pavimento.