O elogio da amizade cristã

O elogio da amizade cristã


O amor entre amigos gozou, sempre, de grande apreço, em todas as culturas. A Bíblia celebra esta relação «absolutamente indispensável à vida, porque sem amigos ninguém quereria viver, embora rico de todos os outros bens».


1.Na encíclica “Deus é Amor”, o Papa Bento XVI distinguiu três formas de que o amor se reveste, recorrendo a três vocábulos gregos para as expressar: eros – o amor entre homem e mulher, a atracção sensual -, agapê – o amor tipicamente cristão, aquele que coloca o outro em primeiro lugar e philia – o amor da amizade. Estas experiências de amor, bem entendido, não se encontram cindidas (“o eros sem o ágape degenera, caindo em qualquer coisa meramente instintiva, ao passo que o ágape sem o eros transforma-se numa enfadonha abstracção idealista”,Tomás Halik): no amor da amizade (philia), por exemplo, há, não raro, o desejo do primado do outro (sobre mim) (agapê).

2.“De todos os bens que a sabedoria procura para a felicidade, o maior é a aquisição da amizade” – considerava Epicuro, prosseguindo uma linha que conhecera em Ética a Nicómaco, de Aristóteles, um significativo impulso (a amizade é, mesmo – dirá o fundador do Liceu -, o mais necessário à vida humana, sendo que esta se entenderá perfeita quando se é amigo por aquilo que cada um é – não por uma utilidade ou um prazer. A amizade perfeita significa querer bem ao outro como a si mesmo). De facto, o amor amical gozou, sempre, de grande apreço, em todas as culturas. A Bíblia celebra esta relação «absolutamente indispensável à vida, porque sem amigos ninguém quereria viver, embora rico de todos os outros bens» (Ben Sirá). Nas Escrituras, o choro de David por Jónatas, tornou-se arquétipo civilizacional quanto ao lamento pela perda do amigo (maxime, 2Samuel 1,26): 

Saul e Jónatas, amados e queridos,
nem a vida nem a morte
os separaram.
Eram mais velozes 
do que as águias
e mais fortes do que os leões.
(…)
Jónatas, a tua morte despedaçou-me
o coração!
Como sofro por ti, Jónatas,
meu irmão!
Como eu te queria bem!
A tua amizade era para mim uma maravilha mais bela 
do que o amor das mulheres

3.No Antigo Testamento, observa o biblista João Lourenço, a amizade é tomada como o fundamento da convivência social. O Presidente do Conselho Pontifício da Cultura, Gianfranco Ravasi, não tem dúvidas em afirmar que “embora tenha uma componente sentimental, a amizade ultrapassa a sexualidade e o eros; supera o utilitarismo e o interesse, e instala-se no campo da livre doação, da comunhão e da intimidade de vida e de experiência” (O que é o homem?, Paulinas, 2012), enquanto o Padre jesuíta Matteo Ricci, no seu Tratado da Amizade, de finais do séc.XVI, na primeira obra escrita por um ocidental em chinês, sentenciava na sua máxima 50: “os amigos são superiores aos pais pois estes podem não se amar, aqueles não. Quando os membros de uma mesma família não se amam, os laços de parentesco permanecem. Retirai o amor à amizade, e ela não terá mais razão de ser” (aqui podendo, aliás, ressoar, na sua presença no oriente, a influência da escola confuciana Yangming que, de acordo com Rong Hengying, fazia da amizade o fundamento de todas as demais relações – “a amizade é superior à relação entre pais e filhos ou entre irmãos, pois funda-se – e somente – na virtude; e é o meio privilegiado do progresso moral de cada um”). Para Tomás de Aquino a amizade é um acto de benevolência para com o outro – um acto de vontade pelo qual o que ama quer para o outro o bem dele – que reclama uma acção que a concretize – a beneficência. É por isso que a amizade nunca é preguiçosa. Ricci vê na amizade um projecto de mútua edificação, isto é, vincula-a, de modo estrito, à prática da virtude.

Elemento capital na amizade cristã é o reconhecimento que ela é, em última instância, um reflexo da amizade de Deus por cada uma das suas criaturas, e de Cristo pelos seus discípulos. E, em realidade, segundo ensinou Joseph Ratzinger, “Deus vem até ao homem somente através dos homens”. A presença de Deus no mundo cumpre-se sempre e quando assumo a responsabilidade (ética) pelo outro. O rosto do outro, o rosto de cada pessoa, remete-nos para o Outro com maiúsculas, e, por isso, tem a inscrição “Não matarás” aposta à fronte (Levinas). Mais: cuidarás, abraçarás, chorarás com. O amigo é o intermediário perfeito deste apelo. Porque é disso que se trata. Completava Ratzinger – fiel seguidor de Agostinho de Hipona que, comentando a Primeira carta de João, escrevera: “Deus é amor [1Jo 4, 8.16]. Se Deus é amor, aquele que ama o amor ama a Deus. Ama portanto o irmão, e estarás seguro. Não podes dizer: ‘amo o irmão’ se não amo a Deus. De modo que mentirás se disseres: ‘amo a Deus’ quando não amas o irmão; assim estarás errado quando dizes: ‘amo o irmão’ se julgas não amar a Deus. É necessário, se amas o irmão, que ames o próprio amor; o amor porém é Deus: é portanto necessário que ame a Deus quem ama o seu irmão” – a fórmula inicial: “os homens só chegam uns aos outros através de Deus”. O apelo, o desejo, a sede de cuidar, acolher, caminhar lado a lado com o próximo encontra-se profundamente arreigada em nós, rumor de um Amor que nos precede (dom que nos liberta de toda a tentação egotista). O amigo é aquele que sabe escutar.

4.Ora, a vivência cristã é profundamente arreigada no corpo – e, note-se, o francês antigo designa muito frequentemente os amigos com a expressão “amigos carnais” (Michel Zink) – e só é possível fazer uma experiência espiritual – e a amizade contém, também, evidentemente, essa dimensão – passando pela mediação corporal, isto é, também pela experiência física. É por isso que tanta falta nos faz, por estes dias, o toque, o abraço, um afago, uma carícia. Quando o seu melhor amigo morre, Montaigne, excepcional homem de letras da história ocidental, prostrado, deixa-nos, também, uma das mais inesquecíveis páginas sobre a profundidade que a amizade pode atingir: ele – diz-nos – está em tristeza profunda com o desaparecimento de Étienne La Boétie, “porque era eu, porque era ele”. 
O homem ou a mulher imune à amizade, desprovido de amigos, seja por acidente ou por desígnio, assinala Steiner, é um exilado, um sonâmbulo. “Amizades absorventes, da mais extrema intensidade, podem medrar durante a infância. Fidelidades inamovíveis são marca da adolescência. Trocam-se palavras-passe, inventam-se linguagens secretas, representam-se rituais de confiança. A amizade autêntica exulta pelos louros conquistados por um amigo. As intimidades contra mundum tornam-se mais vitais do que quaisquer rotinas familiares. As amizades antigas têm o seu encanto peculiar. Até no seu ocaso, a amizade é o enigma da graça permitida ao homem (caído). Em realidade, a amizade “é a bonificação da existência humana, a sua recompensa imerecida (…) Nada suplanta "ser-se amigo de um amigo" (na expressão jubilosa de Schiller). A amizade autoriza-nos a dizer ‘Eu sou porque tu és’” (George Steiner). Assim também, aos olhos crentes, a relação com Deus (Amor): “eu sou porque Tu és”.

5.Animae dimidium meae – «Metade da minha alma», assim é o amigo, na imortal sentença de Horácio, poeta maior de Roma antiga. No socalco dos dias, forjamos cumplicidades e até uma ética da amizade – “quem lhe há-de exigir muito, senão os amigos? Quando você saltar e saltar bem, eu direi sempre: agora mais alto! O homem é para o impossível, o possível todos os bichos o fazem”, escreveu Agostinho da Silva a um amigo, amante da sabedoria -, o amigo emerge sólido e rochoso, como âncora imprescindível à vida. E, no entanto, não há lei científica que determinasse que aquele concreto amigo fosse o meu: “ora, o amigo não é o necessário: é o eleito, o gratuito. Com razão dizemos: «Um amigo é um irmão que escolhemos». Eu escolho, eu sinto-me escolhido: trânsito do gratuito sem porquês.” (José Tolentino de Mendonça”).

6. O amor, adverte Bento XVI em “Deus Caritas Est”, não é um mero sentimento – nele, há sentimento, mas também razão e vontade. Não construímos um amor – por exemplo, sob a forma de philia – para que, em um momento emocionalmente menos controlado, o abandonemos. Perseveremos – como que nos exorta aquela encíclica -, observando e escutando os mais penetrantes exemplos que a história nos oferece. Uma judia holandesa, Etty Hillesum, proveniente de boas famílias, podendo furtar-se ao jugo nazi, quis ir tratar, com os rudimentos de enfermagem que aprendera, entretanto, dos famintos e esfaimados nos campos de concentração e extermínio. Morreu em Auschwitz, dois meses antes de completar 30 anos. No Diário (1941-1943) que ali escreveu e que chegou até nós (agora, em boa hora, reeditado pela Assírio e Alvim), registou que apesar da tragédia e do horror diários que lhe eram dados presenciar, ainda assim não achava a vida desprovida de sentido, contemplando o furtivo jasmim que se aninhara no campo. Com uma coragem espiritual espantosa, ficará, eternamente, como símbolo de uma ‘mística de olhos abertos’ que a todos nos convoca; permanecerá como aquela que, séculos após as palavras com que Jesus surpreendeu a samaritana – “Dá-me de beber” –, ousou escrever estas palavras de fogo: “E se Deus não me ajudar mais, nesse caso hei-de eu ajudar a Deus (…) Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares (…) a morada em nós onde tu resides tem de ser defendida até às últimas”.

7.Na sobrecarga dos dias, poderão advir olheiras e cansaços, dores e sofrimento. Mas no amigo, mora sempre a promessa da alegria: na Suma Teológica, Tomás de Aquino explica que embora a causa da alegria eterna seja exclusivamente Deus, ela é concomitante com a alegria da presença dos amigos; a amizade, por conseguinte, não apenas aumenta a alegria, como estará presente na alegria eterna. Como reza, em definitivo, um ditado japonês, “ao lado do teu amigo, nenhum caminho será longo”. Ou, como de modo inspirado, no-lo legou José Tolentino de Mendonça, que ensaiou uma teologia da amizade, “o amigo é a prova de que Deus nunca nos abandona”.

P.S.: Para o Daniel Minhava e o Luís Bravo e, neles, a todos os amigos.