Morreu Richard Donner, o “rapazola” que pôs uma capa aos ombros do cinema

Morreu Richard Donner, o “rapazola” que pôs uma capa aos ombros do cinema


Além de ter realizado algumas das fitas mais populares das décadas de 1970 e 80, entre elas o primeiro “Super-Homem”, com a sua produtora foi um dos responsáveis por dominar levar os super-heróis ao domínio absoluto das bilheteiras.


Richard Donner, um actor falhado que foi convencido a tentar a sua sorte atrás das câmaras, e que, já depois dos 40 anos, na segunda incursão como realizador, ao projectar sobre o grande ecrã todo o entusiasmo com que devorava em miúdo a banda-desenhada do Super-Homem, esteve na génese da actual fanfarra com filmes de super-heróis que dominam as bilheteiras de cinema em todo o mundo, morreu na segunda-feira, aos 91 anos. O lugar ou a causa da morte não foram revelados por Lauren Shuler Donner, sua mulher e parceira de produção, que avançou a notícia. Além do primeiro Super-Homem, de 1978, um êxito surpreendente que arrecadou mais de 300 milhões de dólares (cerca de 253 milhões de euros) nos cinemas de todo o mundo, cinco vezes mais do que o valor esperado, Donner foi o mestre desse género em que uma dupla improvável arranja sarilhos e diverte as audiências em filmes de acção com muita comédia a olear a coisa toda, sendo responsável pela saga “Lethal Weapon”. Mas os seus créditos não se ficam por aí, tendo assinado algumas das películas mais icónicas da década de 1970 e de 1980, começando pelo filme de terror The Omen (1976), na qual aplicou parte dos conhecimentos que adquiriu a trabalhar na famosa série televisiva de mistério The Twilight Zone.

Na altura, os estúdios ficaram tão convencidos de ter encontrado um realizador que com faro e um talento especial para captivar as audiências e que lhe foi oferecido um milhão de dólares (o que para a época era uma oferta delirante para alguém que estava ainda a começar) para que ele adaptasse o “Super-Homem”. E Donner não se limitou a ir levantar o cheque e fazer de tudo para agradar aos executivos, mas travou uma autêntica batalha para conseguir que uma parte significativa do investimento fosse para os efeitos especiais, tendo a fita franqueado a porta para esse admirável mundo novo que, em muitos casos, acabou por resvalar para um berrante desfiladeiro que levou este tipo de filmes a serem comparados a “parques de diversões” por Martin Scorcese. “Se as audiências não acreditassem que ele estava a voar eu sabia que o filme não ia aguentar-se”, disse Donner à Variety em 1997.

A última vez que o herói com o S ao peito e capa vermelha a sacudir ao vento como uma bandeira fora visto nos ecrãs foi numa série televisiva da década de 1950, e foi Donner quem quis Christopher Reeve no papel que lhe ficaria para sempre associado, sendo ele então um actor relativamente desconhecido. Hoje, o género é de tal modo dominante que, no entender de muitos, deu cabo da indústria cinematográfica, cavando um fosso imenso entre um cinema mais autoral e aquele que é consumido por bandos de adolescentes a enfardar pipocas. Curiosamente, os executivos que dirigem tanto a Marvel Studios como a DC Entertainment – responsáveis pela larga maioria destas fitas de super-heróis – ambos trabalharam para Donner quando estavam a começar as suas carreiras em Hollywood.

Depois daquele êxito estrondoso, Donner quis fazer o teste e voltar à obsessão com os detalhes, assinando o filme independente “Inside Moves” (1980), um drama sobre um homem que, depois de uma tentativa de suicídio, tem de viver com sérias limitações físicas. Seguiu-se “The Toy” (1982), um filme protagonizado pelo comediante Richard Pryor, um homem contratado para ser o parceiro de brincadeira de um puto rico e mimado, e, em 1985, além de “Ladyhawke”, com Rutger Hauer e Michelle Pfeiffer, filme onde Donner conheceu a futura mulher, foi também o ano em que apareceu “The Goonies”, esse clássico da adolescência produzido por Steven Spielberg e que versa sobre as desventuras de um bando de miúdos na caça a um tesouro de piratas. Donner lembraria mais tarde que a razão porque foi contratado para dirigir o filme foi por Spielberg lhe ter dito: “Tu ainda és mais rapazola do que eu.” 

A experiência de trabalhar com um bando de putos acabou por ser uma bênção e, em alguns aspectos, uma fonte de tribulações. “O que era irritante era a falta de disciplina”, disse o realizador numa entrevista em 2015. “Mas isso era também a coisa mais entusiasmante, porque vinha do facto de eles não serem profissionais. Aquilo que lhes arrancava vinha do instinto.”

Não tendo tido filhos, Donner criou laços fortes com os miúdos (entre eles Sean Austin, que tinha então 14 anos, e Josh Brolin, com 17), e anos mais tarde, os miúdos viriam a reconhecer a sua generosidade longe das câmaras, tendo ele pago as propinas para que Jeff Cohen frequentasse o curso de Direito, e tendo pago também os custos da reabilitação a umoutro jovem actor (Corey Feldman).

No ano seguinte, o realizador casou-se com Lauren Shuler e, em 1993, fundaram a Donners Co., uma produtora responsável por uma série de êxitos nesta vaga dos filmes de super-heróis, fitas como “Deadpool”, “The Wolverine” e a saga “X-Men”. Com o ajustamento da inflação, ao todo, os filmes produzidos pelo casal renderam mais de mil milhões de dólares em receitas de bilheteira.

Em 1987, veio o primeiro de quatro filmes da série “Lethal Weapon”, com Mel Gibson e Danny Glover nos papéis de uma dupla de polícias sempre às avessas que acabou por ser mais um estrondoso êxito e que, além das sequelas, originou também uma série televisiva. Em 2017, Gibson disse numa entrevista que Donner era uma pessoa bastante humilde. “Ele tinha um sinal pendurado sobre a porta do seu escritório onde se lia ‘Deixa o teu ego à porta’, e a verdade é que, à sua volta, o ego não tinha lugar. E a verdade é que para mim foi muitas vezes difícil atravessar aquela porta.”

Nascido a 24 de abril de 1930, em Nova Iorque, Richard Donald Schwartzberg mudou o seu nome quando decidiu tornar-se actor. Atribuía ao realizador Marty Ritt a proeza de o ter convencido de que, como actor, nunca iria a lugar nenhum, porque, segundo este lhe disse: “O teu problema é que não sabes receber orientações.” Foi sua a sugestão de que Donner ficasse ao seu lado e fosse aprendendo o ofício, trabalhando como seu assistente. Os seus primeiros créditos estão ligados à televisão, tendo realizado episódios das séries “Gilligan’s Island”, “Perry Mason” e “The Twilight Zone”.

Em reacção à notícia da sua morte, Spielberg homenageou num comunicado: “O Dick tinha um comando tão poderoso dos seus filmes, e provou um talento enorme numa série de géneros. Estar no seu círculo era o mesmo que seguir para todo o lado o teu treinador preferido, o professor mais espirituoso, o tipo mais motivador, o teu mais cativante amigo, o mais fiel aliado e, é claro, o maior de todos os Goonies. Ele foi um rapazola até ao fim. Todo ele era coração. Não consigo acreditar que desapareceu, mas a sua risada rouca e calorosa ficará comigo para sempre.”