A Ilhíada é um poema de muitos começos e alguns fins. A portada que dá acesso ao “átrio” faz hesitar entre o eco sonoro do clássico furor épico e o buraco negro, vazio de viver. Se adiarmos a portada e dermos uso ao batente da porta das traseiras (que é já um modo de habitar), é possível que ninguém venha abrir. Há gente – muita gente, alguma bem bebida – mas é um lugar rumoroso: há zaragatas, berros possessos, há carroças que andam na venda, para cá e para lá, há o canto da florista, pregões, brados, gritos de amor e desapego, “peidos curtos e sustenidos” que mutuamente se respondem, giros de ambulância. A varejeira da funerária do hospital, que chega sempre sem aviso prévio, ajuda à funesta canção da guerra diária. E depois há o cancro que “ataca como um ou dois/ exércitos em guerra”: “desloca-se,/ marcha daqui/ marcha dali, e a/ defesa/ pode ser então/ também ataque.” Igualmente silenciosa é a figura da autoridade, a quem nada se deve participar: “mesmo/ quando ela dorme:/ não é bom/ acordá-la, porque/o seu espreguiçar/ derruba casas/ e depois/ tem lugar, e /aproveita,/ constrói em altura:/ é sempre/ o mesmo que/ quando/ não dorme:/ é idêntico o fim.”
O cerco às históricas ilhas do Porto – matéria só aparentemente destituída de dignidade épica – não é novo e tem-se apertado. Um exército de membros de uma frieza e sensibilidade metálicas tem feito investidas continuadas, das quais penetram neste livro ressonâncias difíceis de ignorar. Chegam como semi-deuses, inflexíveis na sua regra, indomáveis na presunção. Como os gregos, vêm para saquear, não os metais que não há (só um ferro velho …), mas o único tesouro dos das ilhas: o segredo de habitar em comunidade.
Os membros desse numeroso exército, em disputa mas unido para destruir o inimigo comum, nem sempre são óbvios e podem acorrer donde menos se esperaria: “o senhor padre Amadeu/ deu o dedo do anel/ com o do lado a beijar,/ e disse que, hora tão exacta…/ não devia ser espírito penado…/ mas… iria ver! e de novo/ lhe deu o dedo do anel/ com o do lado a beijar;/passadas duas semanas/ veio mesmo:/deu de novo/ o dedo do anel/ com o do lado a beijar/ a quem quis,/ viu, olhou tudo e/ regou abundantemente/ com o seu hissope…/ no fim declarou/ à grande parte da ilha/ que ali estava reunida/ que de facto não: alma/ em sofrimento não era!/ o melhor/seria contactarem/os serviços de electricidade;/ e rezem, rezar/ faz sempre bem,/ e ajoelhem,/ajoelhar é bom;/ disse e foi,/depois de a Lurdes/ lhe ter beijado o dedo/do anel e o do lado;/ ainda tinha casas para visitar/ e muito trabalho litúrgico/ que esperava por si…”
Escandida em 24 momentos de extensão variada, o mesmo número de livros do poema homérico, não é a Ilhíada um produto de consumo rápido. Nem pretende gratificar as expectativas de um certo leitor veterano habituado ao trato com os clássicos, que sente uma vaga lisonja ao regressar a território palmilhado, familiar, como se desse com um quartinho decorado com os brinquedos de infância, obra de um avô diligente, pronto a satisfazer-lhe os caprichos cultos, a dar-lhe o entretém da linear decifração de correspondências, as quais, fazendo sentido, não fazem o sentido. Alberto Pimenta, pioneiro da performance em Portugal, tem, de resto, um currículo literário que mais facilmente encaixa no perfil do miúdo endiabrado que no retrato falado do avozinho, o que ajudaria a explicar que a sua poesia, que tudo sabe elevar à dignidade da literatura, seja muitas vezes sujeita às injustiças dos juízos sumários.
As figuras deste muito admirável livro compõem um elenco que rompe com tradicionais padrões heróicos: o Mendes Marreco, vendedor de lotaria, a Graciete padeira, a doceira Hermínia, o Amândio do boné, o David zarolho, a Micas da fruta, o gordo Gastão dos bacalhaus, o Pingas, protagonista de um momento hilariante em que sentimos o riso a arrefecer. Têm a patine do lugar incrustada no corpo. Homens e mulheres convivem, falam alto, têm os seus momentos de alegria e animação, agem sem rodeios, com a espontaneidade, o desassombro, a capacidade de insulto – como no original. Estão sujeitos a uma regra miseravelmente superior, espécie de fatum que tudo submete e que poucos ousam desafiar. Ao Rodrigo, o possível equivalente precário e vulnerável de Aquiles, o herói máximo da Ilíada, de nada lhe serviu ser ágil de pés: fugiu à polícia (porque aqui a polícia é de fugir) e foi atingindo num tornozelo. Depois de muitas voltas, giros institucionais, regressa a casa com “um pé boto, falha dentro, apoiava no chão/ o lado de fora, era onde havia um único/ osso inteiro, outro não havia.” Na ilha do Pé Descalço, o Eliseu engraixador não teve melhor sorte: “calçaram-no, devolveram-no à sua casa, foi/ um velório invulgar: na ilha todos descalços”. Duque é um destroço, uma espécie de cadáver adiado que pesca suicidas no rio: dá o que “o velho Príamo, carregado de tesouros,/ foi resgatar à tenda de Aquiles”. A nossa ideia daquilo que seja hoje um herói tornou-se difusa e elástica. O heroísmo converteu-se num fenómeno de essencial natureza mediática, produtora de seres de 'culto', por vezes não sem alguma relação, embora bastante longínqua, com a noção primitiva: a excepcionalidade física, a beleza, a riqueza, a performance, a espectacularidade que permite conquistar audiências. Muito afastados quer dos luzeiros de Homero, quer dos apetites da actual sociedade, os heróis de Alberto Pimenta – oprimidos, excluídos, deserdados -, dão o que neles próprios é falta.
A “Ilhíada” é aquilo a que se costuma chamar um presente de grego; e é rápido a desfazer comuns expectativas. Se fatalmente comparado com o seu quase homónimo, a verdade é que conserva dois semas globalmente aceites pela ciência literária como definidores da epopeia: a extensão narrativa; a excepcionalidade da acção: dobrar a pequenez, compor, dia após dia, essa (anti)epopeia do real quotidiano. Alberto Pimenta toma todas as liberdades em relação à tradição para seguir o seu próprio caminho de fidelidade traidora. E, neste sentido, rompe com o património literário e cultural, em reelaboração, não em abandono. Este irrestrito exercício de liberdade que é a Ilíada, com a qual dialoga libérrima e parcialmente, traz no bojo a figura do aedo, possíveis raptos, sacerdotes, oráculos, banquetes, catálogos, lances fúnebres, a própria dinâmica mnemónica do poema de Homero. E não lhe faltam as cenas de confronto, pelejas, façanhas que envolvem cuspidelas, dentes perdidos, narizes torcidos, riscos fundos de sangue, dores de Menelau, o equivalente aprimorado da vulgar dor de corno. Nenhum pormenor é supérfluo, tudo está no lugar certo, até o penico antigo encontrado numa excursão que faz pensar na arqueologia das tróias.
Não é o poema da força e da guerra, como a Ilíada, mas é a guerra da força do poema: signos disparados com arco penetrante, certeiro; palavras despedaçadas; golpes na retórica recamada; ataques à vulgaridade formular, à estupidificação promovida pela que Tanto VÊ (TV), investidas sobre os falsários da língua, os que trocaram o colaborador pelo empregado, os que fizeram ruir o bairro e a ilha e levantaram o complexo habitacional, os que mataram o velho e criaram o idoso, os que despediram o coveiro e admitiram o técnico de profundidade.
Um misto de abundância e contenção, de rasgo e de escrúpulo, de ferocidade máscula e delicadeza íntima, de seriedade e de ironia, ora como um aparte em voz baixa ora como sarcasmo agressivo, o desembaraço, o à-vontade narrativo, por vezes quase displicente, tons desenvoltos, de conversa solta, próprios de quem não coloca a poesia ao abrigo das impurezas da prosa – tudo isto, nesta Ilhíada, desconcerta, perturba e encanta. Homericamente.