Podemos não apreciar a sua música, o seu percurso, os seus sucessos. Podemos ter a memória viva do momento em que conduziu alterada com o filho bebé ao colo, ou de quando rapou o cabelo depois de um período de internamento numa clínica de reabilitação. Contudo, é irrefutável a influência de Britney Spears na história da música pop a partir dos finais dos anos 90 e é muito difícil encontrar alguém que não tenha dançado ao som das músicas ‘Baby One More Time’ ou ‘Toxic’.
Há quem considere, inclusive, que fomos nós próprios que a abandonámos. Uns aceitam essa responsabilidade, juntando-se ao movimento #FreeBritney, outros acabaram por “esquecê-la”, pelo seu súbito desaparecimento, tendo ficado chocados com o que veio a seguir.
ONDE ESTÁ BRITNEY? Foi no ano passado que começaram a surgir as primeiras interrogações sobre o paradeiro da “princesa pop”. Depois, começaram a circular as primeiras “teorias da conspiração”. A verdade é que desde 2007, a cantora nunca mais foi a mesma. Depois do divórcio com o dançarino americano Kevin Federline, pai dos seus dois filhos, e da perda da custódia dos bebés, a artista atravessou um longo período de reabilitação, tendo passado por diversas clínicas em consequência do uso de substâncias ilícitas. Nessa altura, várias aparições em público, de cabeça rapada agredindo um grupo de paparazzi com um guarda-chuva e fotografias que a ridicularizavam pela sua performance na abertura dos MTV Music Video Awards fizeram capas de jornais e revistas de todo o mundo. Em 2008, Britney passou a estar sob tutela do seu pai, Jamie Parnell Spears, que passou a gerir todos os assuntos relacionados com a sua vida.
A tutela em questão, que arrancou em fevereiro de 2008, estava previsto ser temporária e pretendia dar resposta às recaídas públicas da cantora. À data da criação da tutela, os pais emitiram uma declaração descrevendo Britney como “uma criança adulta a meio de uma crise de saúde mental”. A 28 de outubro de 2008, os advogados conseguiram que a tutela fosse permanente, podendo ficar efetiva até à morte de Jamie. O que o mundo não sabia é que, sob tutela há 13 e à beira de fazer 40 anos, a cantora não tem controlo legal nem sobre a sua fortuna, nem sobre todos os assuntos relacionados com a sua vida. Desde a decoração da casa, aos métodos contracetivos que utiliza, aos medicamentos que toma, ao dinheiro que tem no bolso, aos amigos com que se pode relacionar, entre muitas outras coisas. Britney perdeu também o direito de contratar o seu próprio advogado.
SILÊNCIO QUEBRADO Na passada quarta-feira, 23 de junho, a cantora quebrou o silêncio. Depois de inúmeras notícias que tiravam o pano sobre o que realmente se passava, declarações falsas onde dizia “estar tudo bem”, um documentário do The New York Times (NYT) com o nome de Framing Britney Spears (que mostra o controlo feito sobre a vida da artista e como esta já antes se opôs ao papel do pai enquanto tutor) e a mais recente revelação de documentos legais e confidenciais, pelo mesmo jornal (um dia antes da audiência),Britney Spears falou numa audiência virtual no Tribunal Superior do Condado de Los Angeles. A audiência foi pedida em abril através do advogado da cantora, Samuel Ingham III, que, na altura, não especificou o assunto a ser discutido pela estrela da pop (há mais de dois anos que não se dirigia ao tribunal). “Estou traumatizada. Não estou feliz, não consigo dormir. Estou tão zangada, é de doidos. E estou deprimida”, disse Britney Spears, a propósito da tutela estabelecida em 2008. “Não estou aqui para ser escrava de ninguém”, afirmou.
Perante a juíza Brenda Penny, o advogado garantiu não ter “controlado, filtrado ou editado” o testemunho da cliente. Depois, foi a vez da cantora de 39 anos falar: “O meu pai e todas as pessoas envolvidas na tutela deviam estar na prisão”, revelou, citada pelo The Independent e pela CNN. “A última vez que falei consigo (juíza), senti-me como se estivesse morta. Estou a dizer isto outra vez porque não estou a mentir. Talvez possa entender a profundidade, o grau e os estrago. Eu mereço mudanças”, relembrou a cantora. Segundo a mesma, a cantora não disse ao público como se sentia antes, com medo que ninguém acreditasse nela: “Só quero a minha vida de volta”, declarou, comparando a sua situação ao “tráfico sexual”, já que foi forçada a trabalhar sem ter qualquer controlo sobre suas finanças. “As pessoas que me fizeram isto não deviam sair impunes”, alertou a cantora, afirmando ainda querer “processar a família” e contar a sua história ao mundo.
Este grito de revolta surge no sentido de terminar a tutela sem que seja avaliada por profissionais de saúde, afirmando que já “fez o suficiente”. O advogado esclareceu, no entanto, que Britney ainda não o instruiu a formalizar o respetivo pedido. “Quero poder casar-me e ter um filho”, continuou, alegando que a equipa não o permite. “Tenho um DIU [dispositivo intrauterino] dentro de mim para não engravidar, mas a minha equipa não quer que eu tenha mais filhos.” A cantora revelou ainda que faz psicoterapia três vezes por semana e consulta um psiquiatra. Sobre a respetiva tutela afirmou: “Acredito realmente que esta tutela é abusiva, não sinto que posso viver uma vida plena”, acrescentando que as leis “precisam ser alteradas”.
De acordo com o NYT, Britney afirmou também que foi obrigada a tomar lítio contra a sua vontade depois de “anunciar publicamente que faria uma pausa nas performances ao vivo”. “O lítio é muito forte, é um medicamento completamente diferente do que eu estava acostumada. É uma droga forte. Sentia-me bêbeda, não conseguia nem ter uma conversa com a minha mãe ou com o meu pai sobre o que quer que fosse”, contou.
Vivian Lee Thoreen, advogada do pai da cantora, leu um curto comunicado: “Ele lamenta ver a filha a sofrer e em tanta dor. O Sr. Spears ama a filha e sente muito a sua falta”.
AS PROVAS No dia anterior à audiência, o NYT revelou novos detalhes do caso, depois de garantir o acesso a documentos legais confidenciais que mostram o controlo feito sobre a vida da artista e como esta se opôs ao papel do pai enquanto tutor. Os documentos deixam a “nu” uma vida cheia de restrições, com Jamie Spears a controlar a vida da filha ao ínfimo detalhe. A artista chegou até a alegar que o pai estava “obcecado”.
Em 2014, numa audiência fechada ao público, já o advogado da artista, nomeado pelo tribunal, falava em retirar o poder a Jamie alegando problemas com o álcool, entre outras objeções. Num relatório datado de 2016, um investigador do tribunal escreveu como Britney sentia que a tutela se tinha transformado, ao longo dos anos, “numa ferramenta opressora e de controlo”. A cantora reiterou, já nessa altura, que o sistema tinha “demasiado controlo” e assegurou que queria que a tutela fosse terminada o mais depressa possível, pois estava “cansada” de ser explorada. “Sou eu que trabalho e ganho dinheiro, mas todos à minha volta estão na folha de pagamento”, revelou.
A investigação em causa, tal como se lê no relatório, determinou em 2016 que a tutela continuaria a ser “uma alternativa positiva para artista” e que teria o seu melhor interesse em conta “devido às finanças complexas, à sua suscetibilidade a influências indevidas e aos problemas ‘intermitentes’ com drogas”, ainda que o caminho fosse no sentido da “independência e eventual término da tutela”.
O NYT acrescenta que, em 2019, Britney afirmou perante o tribunal que foi forçada a dar entrada numa instituição de saúde mental, “um castigo por levantar objeções durante um ensaio a propósito da residência em Las Vegas”, alegou a cantora. Foi, precisamente, num desses espetáculos que foi forçada a atuar com febre, apelidando esse momento como “um dos mais assustadores” da sua vida. Vídeos dessa atuação começaram a circular online, ridicularizando-a. Em 2020, Samuel Ingham III afirmou ainda que a sua cliente “tinha medo do pai” alegando que ela não apareceria mais enquanto ele continuasse a exercer todo esse controlo”.
#FREEBRITNEY Horas antes do início da audiência, do lado de fora do tribunal, os fãs reuniram-se, vestindo camisas com o hashtag #FreeBritney e segurando cartazes de cartão com fotografias da “princesa do pop”. “Quero que as pessoas entendam que isto é inaceitável. Na minha opinião, isto foi um crime contra Britney Spears ”, disse Tess Barker, a co-apresentadora do popular podcast Britney’s Gram, que compareceu em todas as audiências realizadas até hoje. Carlos Morales, outro membro do grupo de apoiantes, acrescentou: “Ela sempre esteve comigo e a sua música é uma inspiração para mim. Estou aqui para apoiá-la e retribuir ”.
Outras celebridades também expressaram o seu apoio a Spears após a audiência. “Amamos-te Britney! Sê forte”, twittou Mariah Carey. “Estou a enviar muito amor para a Britney Spears e para os seus fãs”, escreveu a artista Brandy. Justin Timberlake, seu ex-namorado que enfrentou um escrutínio generalizado pela forma como tratou a estrela, twittou também: “Todos nós deveríamos apoiar a Britney neste momento. Nenhuma mulher deve ser impedida de tomar decisões sobre seu próprio corpo”.
Momentos antes da audiência, também o namorado de Britney Spears, Sam Asghari, mostrou-se solidário aparecendo com uma camisola do movimento ‘#FreeBritney’ nas redes sociais.