Há cinco anos, depois da noite mágica de Saint-Denis, por entre a euforia de um título inédito e que ergueu, finalmente, Portugal ao patamar dos vencedores, as críticas em relação ao futebol praticado pelo conjunto de Fernando Santos, excessivamente receoso, raramente tomando conta do jogo e dominando os adversários, tornou-se um ponto de desentendimento para os portugueses. A verdade é que todos sabíamos, embora a grande maioria preferisse deixar a sua opinião em vinha d’alhos, para não criticar um grupo de vencedores único, que a sorte, o Deus, ou o Destino, ou seja lá o que for, nos levou ao colo até uma conquista que nos continuava presa na garganta, sobretudo após as presenças no Euro-2000 e no Euro-2004.
Os portugueses voltaram a ver a Selecção Nacional como a menina dos seus olhos, entraram em euforia de cada vez que, sem estarem à espera, um novo ou jovem jogador entrava na equipa dos campeões como dela tivesse feito parte toda a vida, gastaram o latim em elogios infinitos aos meninos que eram produzidos nas academias dos grandes clubes. E chegaram à conclusão irreversível de que possuíamos, agora, a melhor selecção de todos os tempos. Que viesse alguém dizer o contrário e seria de imediato atirado para as caldeiras de Pêro Botelho. Éramos os maiores e ponto final.
Às vezes parecia-me ouvir, à distância, a voz alquebrada e tremediça de um velho tirano que tinha sempre razão: “Não discutimos Deus e a virtude. Não discutimos a pátria e a sua história. Não discutimos a autoridade e o seu prestígio. Não discutimos a família e a sua moral. Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever”. Ora, que tolice! Claro que discutimos. Discutimos tudo o que nos der na gana porque somos livres de o fazer e nenhum lapónio de Santa Comba Dão pode impedir-nos do contrário. Por isso, discutimos também esta tristonha selecção campeã da Europa que, em Munique, durante 90 minutos, se viu varrida do jogo como se não passasse de um mero Luxemburgo.
E, por isso, se pergunta: onde está afinal aquele melhor Portugal de todos os tempos se olhamos para o relvado e vemos tantos jogadores absolutamente incapazes de fazer frente a uma Alemanha tão banal que nem um ponta-de-lança consegue arranjar – inventando Gnabry para a função – e ainda assim marca quatro (cinco com o anulado logo aos 4 minutos) dentro da nossa pequena-área – dois deles foram assumidos como autogolos pela UEFA.
O discurso positivo posterior de Fernando Santos e de Ronaldo tem de ecoar nos ouvidos dos jogadores e dos adeptos. Mas não pode entupir os tímpanos de quem tem a obrigação de escrever sobre o que aconteceu com a devida distância. A verdade é só uma: a Selecção Nacional passeou-se nua, de uma nudez horrenda e chocante, pela Arena de Munique. Uma defesa de laterais inexistentes, um meio-campo lento, previsível e sem potência, um ataque reduzido às cavalgadas de Ronaldo e Jota que, com Pepe, foram os únicos que não desiludiram.
Arrumação A arrumação dos onze, tirada praticamente a papel-químico da do jogo frente à Hungria, deixou cedo perceber que não era adequada para o novo adversário. William não conseguia deslocar-se do mesmo paralelo de Danilo, e ambos, ali juntos, pareciam pinos que os médios alemães derrubavam ou ultrapassavam com uma perna às costas. Cortada a ligação entre eles e Bruno Fernandes, o jogador do Manchester United desapareceu: preparado para jogar com Ronaldo na sua frente, para que possa receber o seu apoio e tocar bolas com o nosso capitão, viu o nº 7 da Selecção fugir em demasia para as laterais, sobretudo a esquerda, de onde Jota desaparece para surgir perto da baliza, e deu consigo a enfrentar os centrais alemães cara a cara. Por isso, não tardou, também ele, a sair do meio para ter uma visão mais periférica do jogo.
Que os dois laterais tinham ordens para defender por dentro até Fernando Santos confirmou numa conversa formal que decidiu ter, mais tarde, com os jornalistas. O problema é que além de serem laterais solitários – principalmente Nelson Semedo, que recebe, quando se arranja, um auxílio dos centrais –, permitindo dessa forma que jogadores com maior categoria, como Gosens (fez todo o corredor esquerdo como se estivesse a praticar os cem metros planos) desfazerem uma defesa na qual Bernardo Silva pura e simplesmente não participa senão na ocupação do espaço na zona do meio-campo, não são nenhumas feras nas posições que ocupam.
Com o tempo a passar e a goleada a acumular-se, Fernando Santos remendou como pôde um lençol rasgado às tiras, e Renato Sanches, por via da sua muito maior cobertura de espaços em relação a William Carvalho (uma das razões apresentadas pelo seleccionador para não ser mais vezes titular), foi disfarçando a fragilidade física de um conjunto habilidoso mas sem andamento para a velocidade e para o poder de choque imposto pelos alemães. Pena que, mais uma vez, Ronaldo não se tenha fixado mais tempo na grande-área de Neuer porque seria ali o ponto de ruptura de uma defesa lenta e previsível que nunca soube, por exemplo, anular os movimentos de Diogo Jota.
Não restam grandes dúvidas que Fernando Santos vai alterar a equipa inicial para o próximo confronto, na Puskás Arena, face à França. Mas, quando olho para o tal banco considerado pelas conversas de café (o que é o menos) e por muitos jornalistas (o que já é grave) o mais qualificado de todas as selecções nacionais de todos os tempos, percebo que perpasse pela alma do engenheiro alguma angústia. Ele pode ter feito de Portugal campeão da Europa, mas não fez certamente de jogadores absolutamente normais a fina flor da juventude portuguesa.
Num torneio destas características, a resposta tem de ser imediata. Assim a quente, logo após o atropelo de Munique, ninguém dará um tostão furado por uma exibição de fazer trepar paredes de satisfação contra a França, mais um conjunto que, fisicamente, nos deixa a anos-luz de distância. Mas também é esse o custo das vitórias e das conquistas. A um campeão da Europa exige-se o céu e não apenas o roçar das nuvens. Portugal ganhou um estatuto do qual se orgulha com toda a razão, mas sabem o seu treinador e os seus jogadores, que todos os adversários pretendem apequená-los. Ainda por cima a França que tem ainda contas a ajustar, mesmo depois da eliminação a que nos sujeitou para a Liga das Nações. Quanto a mim tenho a sensação que esse fato em que estamos metidos é grande demais. Fica-nos largo nas mangas.