Adeptos da prática do surf, Peter Wilton-Davies e Helen Gray viviam em Jersey, nas Ilhas do Canal, mas passavam férias no Alentejo e no Algarve. Peter tinha viajado por toda a costa portuguesa numa autocaravana e, no Natal de 2008, estavam sentados numa praia quando questionaram: “Porque é que não experimentamos viver em Portugal por um ano e vemos se gostamos?”.
Alugaram uma casa na aldeia de Pêra, em Castanheira de Pêra, que pertencia a um casal britânico, e, ao fim de doze meses, compraram-na. “Acho que seria difícil encontrar um lugar com tudo aquilo que temos aqui: comunidade, natureza, água e todos com quem falamos salientam os mesmos aspetos”, avança o inglês, lembrando que, quando chegaram, conheceram duas famílias estrangeiras e, por isso, depressa entenderam que a população estava habituada a outras línguas, assim como a costumes diversos.
“Desde o nosso primeiro dia aqui, sentimo-nos bem recebidos pelos vizinhos, no café local, no clube social da aldeia. Foi divertido descobrir a zona e todas as semanas íamos à aventura para descobrir uma nova parte de Portugal”, sublinha, adiantando que em Jersey “existe uma grande população de portugueses, principalmente da Madeira”. Por isso, a principal diferença que assinalam entre a ilha no Canal da Mancha e o território nacional prende-se com a dimensão.
“Lá, não podemos ir muito longe, enquanto Portugal é um país pequeno, mas na Europa, pelo que se pode viajar durante dias”, frisa, mencionando que “o clima é semelhante, mas mais extremo aqui em Portugal, com temperaturas mais altas no verão e temperaturas mais frias no inverno”.
Surfista há 35 anos, Peter tentava ir à praia duas a três vezes por semana, mas os problemas nas costas traíram-no e, agora, “as atividades centram-se na comida, bebida e boa companhia, com portugueses e estrangeiros”. Por este motivo, concorda que alcançou o objetivo primordial que tinha em mente quando se mudou para o Pinhal Interior Norte, que era “ter uma vida mais descontraída”.
Aos 52 anos, juntamente com a companheira Helen, de 46, e apenas um trabalho a meio tempo, considera que vive bem. “O custo de vida em Jersey é cerca de 400 por cento mais alto e o do imobiliário cerca de 1000 por cento mais elevado”, esclarece o homem que escolheu a aldeia de Pêra como lar em 2010. No entanto, houve sempre uma nuvem negra que pairava sobre a região: a iminência da ocorrência dos incêndios. A título de exemplo, em 2012, as chamas chegaram muito perto da residência dos Wilton-Davies. “Foi mais perigoso do que os de 2017”, descreve.
“O Governo e a Câmara não fazem nada” O incêndio florestal de Pedrógão Grande deflagrou a 17 de junho de 2017 no concelho de Pedrógão Grande, no distrito de Leiria, e alastrou-se a Figueiró dos Vinhos, Ansião e Castanheira de Pêra.
Apesar de continuar a ser visto como o maior incêndio florestal e mais mortífero da História do país e o 11.º mais mortífero, mundialmente, desde o ano de 1900 – de acordo com o artigo “Fogo de Pedrógão Grande é o 11.º mais mortal do mundo desde 1900”, da Rádio Renascença –, Peter constata que tiveram “a sorte” de parte norte do vale de Castanheira de Pêra não ter ardido.
“Perdemos alguns amigos nesses incêndios e esperávamos que tudo fosse diferente, mas nada mudou”, realça, com tristeza, o designer gráfico e fotógrafo. Volvidos quatro anos, “a floresta está pior, nada é limpo, mais eucalipto é plantado e o Governo e Câmara não fazem nada”.
Exatamente pelo conhecimento teórico e prático que tem da fotografia, aliado ao facto daquela zona lhe ser familiar, Peter é autor de muitas das fotografias desta tragédia que, ainda hoje, circulam nas redes sociais e órgãos de informação regionais. “As fotos que tirei de incêndios florestais anteriores foram usadas pelos bombeiros para treino e estudo do desenvolvimento do fogo. No início dos incêndios de 2017, não tinha ideia do quão grandes e perigosos seriam e do que se passava a sul de Castanheira de Pêra”, confessa, adiantando que tratou de evacuar a aldeia e dirigir-se para fora da área da EN236.
“Passámos por carros queimados e não sabíamos aquilo que tinha acontecido ou sequer a quem pertenciam. Mais tarde, descobrimos que tínhamos perdido alguns bons amigos naquela estrada. Ainda assim, estou contente por ter fotos e vídeos desses incêndios, já que foram usados não só pelos media portugueses como pela National Geographic e espero que, um dia, eles possam ajudar a persuadir as pessoas a fazerem algumas mudanças aqui”.
Quando o flagelo teve início, Peter e Helen estavam a conviver, numa sardinhada, no clube social da aldeia. Não sabiam aquilo que estava a acontecer até que avistaram “nuvens gigantes de fumo a vir do vale”. A mulher quis entrar no carro e sair da localidade, mas Peter teve sangue frio e opôs-se. “Se tivéssemos feito isso, acho que também teríamos sido vítimas na N236”.
No dia seguinte, decidiram fazer as malas e partir, com amigos, mas foram informados de que a estrada estava aberta para o IC8, pelo que foram de carro até à costa e passaram cinco dias num parque de campismo na Figueira da Foz. Aí, assistiam aos noticiários “de hora a hora para ver o que se passava, pois em Castanheira de Pêra não havia serviço móvel nem internet” e queriam ter notícias dos vizinhos e da casa, tendo ficado “muito aliviados ao descobrir que a mesma estava intacta”.
“O incêndio principal, vindo da Lousã, tinha mudado de direção quando atingiu a estrada por cima da aldeia. As semanas seguintes foram muito difíceis porque estava tudo coberto de cinzas e era complicado respirar por causa do fumo”. Um panorama que não demoveu o casal de se voluntariar e oferecer comida e roupa a quem mais necessitava.
Promessas por cumprir Em dezembro de 2017, o então ministro do Planeamento e das Infraestruturas garantiu que, até ao verão do ano seguinte, seriam limpos, no âmbito das faixas de proteção até aos 10 metros, 3 mil quilómetros da rede rodoviária e 750 da rede ferroviária.
“O nosso desígnio, sem prejuízo do trabalho realizado no passado que foi sempre garantido de uma limpeza até aos três metros nas nossas vias e depois a limpeza seletiva até aos 10 metros, vamos estender e intensificar esse trabalho e vamos fazê-lo até ao verão em três mil quilómetros da rede rodoviária e em 750 da linha ferroviária”, afirmou Pedro Marques, falando aos órgãos de informação à margem da assinatura do protocolo entre a Altice Portugal e a Infraestruturas de Portugal (IP), no salão nobre dos Paços do Concelho de Pedrógão Grande.
O diploma com as medidas relativas a este procedimento determinava que, em 2018, a Infraestruturas de Portugal desenvolvesse “todas as atividades necessárias, nomeadamente de ceifa e de corte selectivo de vegetação herbácea, arbustiva e arbórea até dez metros do limite da faixa de rodagem, nas faixas de gestão de combustível, relativamente à rede rodoviária de que é concessionária”. Naquilo que concerne a ferrovia, o documento estabelecia que também aqui a empresa devesse manter limpa de vegetação uma faixa de até dez metros do limite do carril exterior.
“Nunca vi nenhuma estrada libertada por 10 metros dos dois lados. Temos sorte se isso acontecer por 3 metros. Há novas plantações de eucalipto, que são ilegais, e já as denunciei, com mapas e fotos, à Câmara que nada fez. As árvores ainda crescem nas linhas de eletricidade”, afirma Peter, acrescentando que “as árvores mortas de 2017 ainda estão lá, pois ninguém as limpa quando as novas árvores são cortadas, deixando muito combustível para o próximo incêndio” e, por este motivo, na opinião de Peter, “parece que estamos apenas à espera de que o o próximo incêndio aconteça”.
Em julho de 2019, a agência Lusa noticiou que “dos 278 municípios em Portugal continental, há 53 que, mais de dois anos depois dos incêndios que mataram 66 pessoas no centro do país, não têm, segundo o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), o seu Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios (PMDFCI) em vigor”. Tal informação assumiu contornos particularmente graves porque 65 civis e um bombeiro perderam a vida no grande fogo.
“Dizem-se muitas coisas, mas nada é feito. Todos lemos artigos e histórias sobre aquilo que devia ser feito mas, ainda assim, não há ação. Não vejo como é que as coisas vão mudar com as pessoas que governam o país e o interior”, lastima o habitante da aldeia “muito tranquila e agradável”.
“Temos cerca de 90 residentes permanentes e outros 30-40 que vêm passar férias nas casas das suas famílias. É uma das aldeias mais animadas de Castanheira de Pêra, com o nosso clube social aberto todos os dias e a velha escola com aulas de ginástica e feiras de arte”, reconhece, não esquecendo de referir “a piscina renovada” e o facto de estar rodeado por um bosque de árvores autóctones ao longo da Ribeira de Pêra, “um dos motivos pelos quais os incêndios não chegaram” até lá.
Um dia normal na vida dos Wilton-Davies passa por levar a passear Lord, o cão de 15 anos que faz quatro caminhadas. Depois, Helen está em teletrabalho e, duas vezes por semana, dá aulas de pilates e yoga, além de fazer tricô. Já Peter dedica-se a trabalhos na casa, no jardim ou em algum lugar específico da aldeia que precise de ser intervencionado. ”À tarde, podemos tomar um café e nadar numa das muitas praias fluviais ou subir as montanhas e ir à floresta”, diz o homem cujos hobbies principais são a carpintaria, a culinária, fotografia e videografia, pintura e socialização.
Um dos locais prediletos de Peter e Helen é a piscina – ou tanque de rega, como lhe chamam – que fica por cima do clube social, o Grémio Perense. Não era pintada há 20 anos nem lavada há seis. “Tivemos muita ajuda de amigos e vizinhos e a tinta foi fornecida pela Junta de Freguesia”. Ao lado deste equipamento, é possível encontrar o parque de merendas com bancos e mesas novos e muita sombra.
“Também construímos um novo churrasco comunitário no Grémio. Faço parte da gestão do mesmo, que é uma entidade sem fins lucrativos e todas as pessoas trabalham de graça”, declara, revelando que, nesta coletividade, são organizados almoços, churrascos e jantares cujos fundos revertem para o pagamento de contas e renovações.
Levada da Água da Antiga, o segredo para dar uma nova vida à aldeia “Há muitos anos, no tempo dos nossos bisavôs, a aldeia de Pêra, aninhada na serra acima de Castanheira de Pêra, era rica em vida, trabalho e água. A sempre corrente Ribeira de Pêra deu vida às fábricas de tecidos, às hortas da aldeia e às casas desta aldeia tradicional de granito. Nas últimas décadas as fábricas fecharam e os jovens mudaram-se, mas a água continua a fluir”, foi deste modo que Peter deu a conhecer o seu mais recente projeto aos órgãos de informação local, escrevendo sobre a água que foi desviada da ribeira e dos seus afluentes, por uma série de canais, de modo hábil.
Por ser apaixonado pela aldeia que o acolheu de braços abertos, após quatro semanas de trabalho, vangloria-se do resultado final, explicitando que “a água de nascente límpida e pura corre ao longo de 1400 metros de comprimento, trazendo vida às hortas, aos jardins, aos parques e à piscina da aldeia”.
O problema da levada é o mesmo do da piscina: o sistema não foi usado durante quatro ou cinco anos e foi partido e preenchido por terra pelas empresas que cortavam árvores na floresta.
“O povo de Pêra convida todos a uma visita. Explore os percursos pedestres ao longo do rio e da floresta, os becos, as casas de pedra, a nossa capela do século XVII, dê um mergulho no rio ou a piscina recentemente renovada e pare para uma bebida fresca e um lanche no nosso centro social de aldeia (aberto todos os dias a partir das 13h00). Esperamos vê-lo em breve”, escreveu Peter no texto que veiculou. Agora, conta ao i que um dos motivos pelos quais se empenhou tanto neste empreendimento foi desejar mostrar à Câmara Municipal “aquilo que pode ser feito pelos moradores”.
“Espero que seja um exemplo que eles sigam. Também limpei o caminho ao longo da levada e irei marcar o percurso com placas na próxima semana”, partilha. “A Câmara tem afirmado que quer criar caminhos como este há muitos anos mas, novamente, nada aconteceu, quando tudo aquilo de que precisa são alguns voluntários e algumas ferramentas básicas”.
“Esta renovação também ajuda a trazer pessoas para a aldeia para explorar, talvez ficar, ou apenas para comprar uma bebida gelada no bar do clube social. Já conheci na piscina várias pessoas que não conhecia, umas de Castanheira de Pêra e outras de muito mais longe”, recorda o inglês que tem e alimenta uma ambição constante: “Só preciso de encontrar o meu próximo projeto!”.