A pequena Irlanda do Norte, com pouco mais de 1,8 milhões de habitantes, voltou a ser um barril de pólvora, um espinho no flanco do governo britânico. À boleia do Brexit, a questão irlandesa voltou a estar nas bocas do mundo, como não estava desde os anos 90.
Será que vai haver uma fronteira no mar da Irlanda? Ou uma fronteira terrestre na ilha? Será que o domínio britânico sobre este território tem os dias contados? O Acordo da Sexta-feira Santa está em risco? Porque é que o Presidente Joe Biden está preocupado, e os unionistas se queixam da “traição ao Brexit”? O que é que tudo isto significa? E o que é que tudo isto tem a ver com o Reino Unido já não estar na União Europeia?
Para contar essa história é preciso recuar exatamente um século, até ao distante ano de 1921, quando uma geração de irlandeses, muitos veteranos da guerra da independência, herdeiros de séculos de luta contra o colonialismo britânico, viu a sua pátria ser dividida por Londres, que reconhecia a República da Irlanda, no sul, ficando com Irlanda do Norte – que tinha uma estreita maioria de protestantes que se identificavam com o império, e uma minoria católica irlandesa – a troco de um acordo de paz oferecido a dirigentes do Exército Republicano Irlandês (ou IRA).
A nova fronteira foi um trauma que que quebrou o IRA e gerou uma guerra civil entre irlandeses, que dividiu famílias, amigos, vizinhos, que faziam a sua vida tanto a norte como a sul – imagine o que seria, de súbito, ter uma fronteira entre o norte e sul de Portugal. Alguns já nem podiam levar o gado a pastar às suas terras, como o trisavô de Gordon Crockett. “É a última vez que levas as vacas através das fronteiras”, disseram-lhe os homens da alfândega, há um século atrás. E assim foi, contou ao Independent o seu descendente. Que, como tantos outros irlandeses, não esquece.
O trauma continua bem vivo, de um lado e do outro da fronteira. Em Dublin ainda podemos encontrar por todo o lado a imagem da ilha unida, até nos logótipos das empresas de transportes públicos ou instituições estatais, como promessa do que aí vem. Mesmo as divisões políticas são marcadas pela partição: durante décadas, o bipartidarismo não foi entre centro-direita e centro-esquerda, como na maioria da Europa, mas entre o Fine Gael, defensor da partição, e o Fianna Fáil, opositor da partição – recentemente ganhou destaque o Sinn Féin, um partido nacionalista irlandês.
Já na Irlanda do Norte, a história é ainda mais complexa, acelerando nos anos 60, quando um movimento pacífico pelos direitos civis – criado à imagem do movimento afroamericano de Martin Luther King, exigindo o fim da segregação laboral e habitacional de católicos, bem como o direito a uma pessoa, um voto, dado que na Irlanda do Norte só podia votar quem era dono de uma casa, e poucos católicos eram – foi brutalmente reprimido pelas autoridades, entre ataques de milícias protestantes.
Após meses de motins, o IRA – no rescaldo de uma série de disputas internas, em que venceu a fação Provisional IRA, ou PIRA – voltou a entrar em cena, prometendo expulsar as tropas britânicas enviadas para controlar a situação na Irlanda do Norte.
O que se segue, entre 1969 e 1998, são décadas de assassinatos, fogo de snipers, atentados à bomba, sequestros e tiros em joelhos, os chamados Troubles, com os republicanos a enfrentar as sangrentas milícias unionistas – como a Ulster Volunteer Force (UVF) e a Ulster Defence Association (UDA), muitas vezes auxiliadas pelas secretas e pelos militares britânicos. Eram anos em que terroristas do UVF punha bombas no centro de Dublin, e o IRA prometia manter uma Armalite – uma espingarda importada sobretudo com a ajuda de irlandeses nos EUA – na mão e uma urna na outra, uma guerra com um saldo de mais de 3600 mortos.
Só após um longo impasse – o IRA acabou por admitir que expulsar os britânicos por via militar seria impossível, enquanto ministros britânicos diziam à BBC que não havia maneira de derrotar a insurreição à força – se começou a dialogar, em segredo. “Negociar a paz requereu coragem”, recordou num artigo de opinião no Guardian Alastair Campbell, conselheiro do antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair, que assinou o Acordo da Sexta-feira Santa, em 1998. E tanto os líderes republicanos como unionistas sentados à mesa viviam “com um medo nada irracional de que alguém lhes pudesse meter uma bala na cabeça apenas por falarem connosco”.
Nesse esforço de negociação entre gente que se odiava, foi chave a mediação internacional, em particular da UE e do então Presidente Bill Clinton – incentivado por um grupo de senadores que incluía o hoje Presidente Joe Biden. Afinal, tratava-se de um país com uma enorme comunidade irlandesa, que mantém uma enorme ligação às terra e cultura ancestral. Incluindo o próprio Biden, que frequentemente lembra a história da família da sua mãe no condado de Mayo e cita poetas irlandeses. E que, quando um repórter da BBC lhe pediu um comentário rápido, na noite da sua eleição, se limitou a responder: ”Sou irlandês”.
Feridas Desde 1998, Gordon Crockett pôde fazer o que o seu trisavô nunca conseguiu. “Nós cruzamos a fronteira seis ou oito vezes por dia”, contou ao Independent, apontando para as suas ovelhas. “Se houvesse alguma obstrução ia atrasar o trabalho todos os dias”. Mas não foi só a preocupação com pastores como Crockett que motivou a UE e os EUA, sob a liderança de Biden, a fazer da possibilidade de uma fronteira terrestre na Irlanda – algo inevitável para cumprir a promessa do Brexit, do Reino Unido ter regulações comerciais, fiscais e laborais diferentes do resto da Europa – uma linha vermelha.
A questão é que isso violaria o Acordo da Sexta-feira Santa, que prometia ainda que a Irlanda do Norte se seria parte do Reino Unido enquanto uma maioria da população o desejasse, podendo optar juntar-se à República da Irlanda, com unionistas e republicanos obrigados a partilhar o poder entretanto.
Contudo, hoje o receio já não é tanto uma fronteira terrestre, é mesmo uma fronteira no mar da Irlanda, entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido (ver infografia). Foi essa a solução de Boris Johnson para quebrar o longo impasse nas negociações com Bruxelas. Ou seja, deixar a Irlanda do Norte com regulamentos comerciais diferentes do resto do Reino Unido – para impedir produtos com padrões sanitários abaixo dos europeus de entrar pela fronteira com a República da Irlanda, por exemplo – e revistar tudo o que entra no território.
Para os unionistas – cujo principal partido, o Partido Unionista Democrático (DUP), foi durante anos muleta parlamentar dos conservadores – foi uma traição inimaginável. Temem ficar para trás, que acelerem as tendências rumo à unificação que já se faziam notar. É que brevemente os católicos deverão ultrapassar demograficamente os protestantes na Irlanda do Norte, cada vez mais integrada economicamente com a República da Irlanda, sobretudo desde o Brexit.
Entretanto, mais de meio século depois do início dos Troubles, os chamados muros da paz que dividem Belfast, entre o bairro católico de Fall e o protestante de Shankill, continuam de pé. Os telhados das casas à beira desta fronteira ainda têm placas à prova de bala, para evitar projéteis, e os portões estão sempre prontos a ser fechados à noite, não vão as coisas aquecer. Como aconteceu em abril, com os piores motins em décadas, quando multidões de jovens protestantes, incentivados por paramilitares, se lançaram contra os muros, lançando petardos, pedras e cocktails molotov contra os bairros católicos.
E, enquanto o Governo britânico discute com a UE o direito a transportar salsichas para a Irlanda no Norte, naquilo que foi ridicularizado como “guerra das salsichas”, a sensação entre unionistas é de impotência e abandono, pelo próprio país a que juraram lealdade.
“Será que marchas vão matar o protocolo de saída?”, tweetou Rory Carroll, do Guardian, enquanto acompanhava uma manifestação unionista em Shankill Roada, esta semana, rodeado por bandeiras britânicas e retratos da Rainha Isabel II. “Não, disse toda a gente com quem falei. Só a violência. E ela vem aí”.