Tenho um sonho recorrente e não, não é aquele que a gente vai caindo, caindo, caindo, sem nunca haver um fundo capaz de nos impedir de ir ainda mais para o fundo. Esse sonho é uma espécie de Ben Hur ou de Spartacus, um filme que toda a gente alguma vez viu na vida e, geralmente, até várias vezes, mas fica à espera de ver ainda mais uma vez. Gosto de sonhar. É como uma noite bem passada no cinema ou em frente ao ecrã da televisão.
Entretenho-me com os sonhos, recordo-os praticamente todos na manhã seguinte, às vezes acordo no meio de um deles e consigo recuperá-lo logo a seguir. Mas volto ao sonho recorrente, porque esse encanita-me um bocado. Nele falo muito, mas não percebo patavina do que digo e quem me surge no sonho também não. Faço um esforço para comunicar e as frases saem-me todas sem vogais, só consoantes, assim uma espécie de húngaro ou algo que o valha.
Finalmente acordo com o barulho de mim próprio a falar essa língua de Tolkien e sinto um alívio profundo de saber que alguém me entende e até eu volto a perceber o que digo. Mas o maldito sonho tem uma vertente mais macabra: mesmo a dormir tenho a consciência de que estou a falar enquanto sonho. Só que, ao contrário do meu discurso onírico entaramelado, falo corretamente, na maior parte dos casos discutindo com alguém.
Claro que para saber isto tive de me submeter a várias consultas. Não de médicos, que de sonhos não percebem patavina, o dr. Sigmund Freud que me perdoe, mas de alguns seres humanos que tiveram a infelicidade de repartir comigo os quartos onde durmo. No realidade, servem-me de tradutores: contam-me o que disse durante a noite e, mesmo com palavras concretas, vogais e tudo, fico sem perceber onde quereria chegar.
Dizem que descer os degraus dos sonhos provoca o despertar dos monstros. Talvez, no rés-do-chão do sono, tenha aprendido a sua linguagem. E fico, cá dentro, com a vontade irresistível de a escrever.