O i lançou ontem o primeiro artigo de uma série sobre as pontes do Porto, no âmbito dos 212 anos da tragédia da ponte das Barcas e do lançamento do concurso para uma nova ponte sobre o Douro. Se na edição de segunda-feira se falou da ponte do Infante D. Henrique e na ponte do Freixo, esta edição contamos algumas histórias das duas pontes assinadas pelo engenheiro Edgar Cardoso: a ponte da Arrábida, e a de São João.
Hora de modernizar Corria a década de 40 quando surgiu na cidade do Porto um grave problema de mobilidade: as mercadorias e os passageiros eram cada vez mais, e a ponte Luiz I ficava cada vez mais aquém das necessidades de transporte entre as duas margens do rio Douro. Só havia uma solução em mente: construir a terceira travessia entre as duas localidades. Num momento em que o troço urbano do rio era cruzado apenas pelas pontes Maria Pia e Luiz I, foi necessário partir para uma nova infraestrutura, na zona ocidental da cidade, que viria a marcar para sempre a paisagem da zona e o fluxo dos cidadãos.
Coube ao engenheiro Edgar Cardoso a obra de ligar a Afurada, do lado de Vila Nova de Gaia, ao Campo Alegre, do lado do Porto. O Estado quis, Edgar Cardoso sonhou, e a obra – com o financiamento assegurado – nasceu, pode-se dizer, adaptando o poema de Fernando Pessoa. Projetos aprovados, financiamento pronto, e montado o escritório exclusivo para a obra na zona ribeirinha, que é hoje um restaurante, estava iniciado aquele que seria o motivo de diversão, convívio e até apostas da cidade do Porto, nas décadas de 50 e 60.
É importante recordar que, naquela época, projetava-se o maior arco em betão armado do mundo, com um vão de 270 metros. A ousadia do projeto, no entanto, fez torcer os narizes dos portuenses, como conta ao i Helder Pacheco, historiador, professor universitário e autor de extensa literatura sobre a cidade do Porto, que a define como uma cidade “aberta à inovação”, com um senão. “O que contraria os cânones, leva logo pancada”, começa por explicar. “Depois, começam a olhar de lado, a mirar, e passados dois anos já estão a defender aquilo com unhas e dentes”, conclui ainda, ilustrando, segundo o mesmo defende, o ar sisudo e desconfiado da população da cidade que, refere ainda, não é inédito da ponte da Arrábida. “É o que se passou com o Palácio de Cristal, com as pontes metálicas e com a Casa da Música. O Porto à primeira vista reage”, explica.
Com a ponte da Arrábida, esclarece o historiador, não foi uma reação de não aceitar o desenho, mas sim de desconfiança relativa à segurança da construção. “Havia ‘mirones’, sobretudo reformados, mas não só, que iam quase diariamente ver as obras”, relato ainda Helder Pacheco, que relembra que a emoção e as dúvidas sobre a segurança da ponta eram tantas, que “até se fizeram apostas, sobre se a estrutura iria ou não cair quando tirassem o cimbre… e afinal, não caiu”. “A opinião pública duvidosa perdeu então a aposta”, ironiza ainda o historiador.
É importante, como o mesmo refere, contextualizar o momento em que se construiu a ponte. “Estamos a falar da década de 60. Não havia muito mais para fazer. Havia cinema, alguma televisão… mas não havia internet, nem assim grandes obras frequentemente, então a construção da ponte da Arrábida tornou-se num espetáculo para toda a cidade”, explica o historiador, que fez mesmo questão de comparar a situação, da cidade do Porto, com a que se vivia na cidade britânica de Newcastle, que disse ter muitas parecenças à cidade do Norte de Portugal. “Newcastle, naquela altura, já tinha umas seis ou sete pontes modernas. O Porto tinha só a Luiz I e a Maria Pia, portanto a construção de uma nova era mesmo algo de inédito e de especial”, conclui Helder Pacheco.
A ponte foi de extrema importância para a cidade, revela ainda o professor universitário, já que permitia uma ligação entre Norte a Sul sem ter de atravessar o centro da cidade do Porto, como acontecia até à sua inauguração, saturando fortemente a ponte Luiz I e as vias de acesso. “Basta pensar em todo o trânsito, quer de mercadorias e de automóvel normal, que se fazia por uma única ponte. A Arrábida descongestionou sobretudo o trânsito pesado para o porto de Leixões”, explica ainda.
A sua construção, no entanto, não veio sem críticas e sem problemas ambientais. “O jardim Botânico do Porto ficou muito reduzido”, lamenta Helder Pacheco, que, ainda assim, vinca a grande importância que teve para a cidade, bem como os fortes impactos na vida das populações, mais pronunciados na margem do Porto do que do lado de Gaia. “Inicialmente não houve grande diferença, porque o lado de Vila Nova de Gaia onde ia dar era muito pouco habitado”, começa por explicar, garantindo ainda que a construção desta ponte “criou uma nova centralidade para a Boavista”, que, hoje em dia, é uma das zonas mais movimentadas do Porto.
O historiador da cidade fez ainda questão de levantar um dado curioso sobre a ponte, ainda que num tom tétrico, que não deixa de ser um detalhe interessante. Acontece que, no momento da construção da ponte da Arrábida, corria por entre a população o receio que se tornasse no novo sítio de eleição para os suicídios, tomando em conta a distância a que se encontra do rio, a 70 metros de altura do nível médio das águas do Douro. Acontece, no entanto, como o mesmo afirma, que a ponte Luiz I se manteve como o sítio de eleição para os suicídios portuenses, um dado que o historiador refere como sendo curioso, justificando, “provavelmente, devido ao facto de ser a ponte que está mais à mão”.
Ó meu rico São João Mesmo antes da inauguração da ponte da Arrábida, a cidade do Porto já se enfrentava com um novo desafio: a ponte Maria Pia, a este da cidade, não era suficiente para acarretar com a carga material e de passageiros que chegava ao terminal de Campanhã, na margem norte do rio Douro. Os relatos históricos contam que a ponte, construída no século XIX, tinha já dado o seu contributo à cidade, mas estava na hora de acabar com o caminho de via única, que criava grandes engarrafamentos na chegada à estação ferroviária de Campanhã.
Como tal, e após o sucesso da ponte da Arrábida, o engenheiro Edgar Cardoso foi novamente chamado à linha da frente para resolver mais um dilema de mobilidade portuense, no ano de 1966. Apesar de ter o início da sua projeção na década de 60, a construção da ponte de São João só começou no início da década de 80. Uma realidade, conforme se pode verificar pelos registos históricos, associada a fortes burocracias, que adiaram uma e outra vez o financiamento do projeto e a aprovação dos concursos para a empreitada, que acabou por ser inaugurada no ano de 1991.
Isto para não falar do atraso no arranque da construção, que se prendeu com, como contam vários relatos da altura, a inexistência de um projeto de execução completo, tendo a obra sido planeada à medida que era executada, levando a cabo testes e experiências durante a sua construção, uma realidade aparentemente frequente nos trabalhos de Edgar Cardoso. Bastará tomar como exemplo as declarações de Aristides Fernandes, colaborador do engenheiro durante 50 anos, à Lusa, que, em 2013, citado pelo Porto Canal, afirmava que Edgar Cardoso tinha feito os cálculos iniciais para os pilares da ponte São João com… cenouras, moldando e esculpindo o vegetal com um x-ato.
A ponte nasceu órfã Chegada a manhã da inauguração, as populações foram surpreendidas pela ausência do próprio “pai” da ponte de São João. Edgar Cardoso foi um ávido crítico da “pressa” com que se inaugurou a ponte, e nos dias anteriores à cerimónia, o engenheiro surgiu em várias ocasiões nos meios de comunicação, garantindo que não existiam condições de segurança para inaugurar a infraestrutura, o que o levou mesmo a não comparecer à cerimónia. Foram, aliás, vários os ‘arrufos’ entre Edgar Cardoso e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), que o engenheiro acusou, relativamente à ponte de São João, de não ter analisado propriamente as suas condições de segurança.
“O senhor já viu alguma empresa do Estado fazer alguma coisa de jeito?”, perguntava Edgar Cardoso a um jornalista da RTP, a uma semana da inauguração da ponte São João, ilustrando os grandes atritos entre o engenheiro, o LNEC, e diferentes figuras do Executivo, admitindo o também professor, na mesma entrevista, ter escrito uma carta ao primeiro-ministro – na altura Cavaco Silva – a dizer que “tudo o que se estava a passar na ponte era uma vergonha para o Governo”. O mestre da travessia ferroviária garante que Cavaco Silva não lhe deu resposta, e a realidade é que o então primeiro-ministro não compareceu à inauguração da ponte, tal como o então presidente da Câmara Municipal do Porto, Fernando Gomes e o Presidente da República na altura, Mário Soares. A inauguração da ponte foi liderada pelo então ministro das Obras Públicas, Ferreira do Amaral, que justificou a ausência do primeiro-ministro, na altura, com “razões perfeitamente inultrapassáveis”.
A quarta travessia sobre o Douro acabaria batizada com o nome do santo mais celebrado na cidade do Porto, o São João, que, recorde-se, não é o santo padroeiro da cidade. Enquanto muitos celebravam a mítica noite devota ao santo, na baixa da cidade, de martelo, sardinha e cerveja em mãos, os elementos envolvidos na construção da ponte preparavam-se para a inaugurar na manhã do dia seguinte, feriado no Porto.
Helder Pacheco lamenta que não se dê mais importância à ponte de São João, mas admite que, devido à sua jovem idade, seja natural que não possua a história de outras pontes mais antigas da cidade. Ainda assim, não a desvaloriza, utilizando-a como um espelho dos tempos. “Eu fui ver a construção da ponte de São João várias vezes, e acompanhei o processo todo de perto”, começa por lembrar. “Ainda assim, quase sempre era só eu e mais algum amigo. Já ninguém se interessava por ir ver a construção de algo novo, de uma infraestrutura nova”, lamenta, referindo que este é um “sinal dos tempos”, em que, ao contrário da década de 60, em que o país se encontrava ainda, segundo afirma, escasso em grandes infraestruturas, a década de 90, e em diante, foi um tempo em que “as pessoas se acostumaram à inovação, em que todos os dias havia uma obra”, explicando assim a sua peregrinação solitária aos estaleiros da ponte de São João.
O historiador faz ainda questão de apontar um aspeto negativo da ponte de São João, comparativamente à sua irmã mais velha, construída ainda no século XIX. “Quando construíram a ponte Maria Pia, tiveram de fazer viadutos de acesso à estação de Campanhã, em pedra e em arco, e quando fizeram a São João, tiveram também de fazer um grande viaduto em betão”, começou por explicar Helder Pacheco, que recorda os momentos em que descia e subia a calçada do Rei de Lameiro, vizinha a estes viadutos, e a diferença fez-se notar imediatamente. “O viaduto moderno faz um barulho insuportável por ser betão, quando no viaduto do século XIX os comboios passavam e quase que não se sentia nada”, lamenta o historiador, que recorda que “havia habitações por baixo que foram muito afetadas pelo ruído”, e que houve “uma perda de qualidade ambiental, em matéria de ruído” provocada pela instalação da ponte de São João.