Uma Vez Uma Vez Uma Vez Era Gertrude Stein

Uma Vez Uma Vez Uma Vez Era Gertrude Stein


Escrita em 1933, A Autobiografia De Alice B. Toklas lança uma indiscreta perspetiva sobre os grandes vultos das artes e letras da primeira metade do século XX – de Picasso a Matisse, de Hemingway a Pound.


Gertrude Stein adorava tudo o que fosse passível de ser quebrado e tinha pavor às pessoas que só colecionavam o inquebrável. Deslumbrava-se com paisagens, embora preferisse sentar-se de costas voltadas para elas. Matisse disse-lhe saber que o mundo para ela era um teatro. Eliot a seu respeito em Cambridge considerou-a boa “mas não para nós.” Sobre ele escreveu um retrato a que chamou O Quinze De Outubro, mas para seu desgosto Eliot não o editou.
Picasso tinha vinte e quatro anos na altura em que a retratou e depois de ter posado mais de oitenta ou noventa vezes para ele no seu atelier na rue du Ravignan, não se achou minimamente parecida, ao que ele respondeu que não fazia diferença nenhuma, “há-de parecer-se.” A ele dedicou-lhe o poema “Se eu contasse: Um Retrato Acabado De Picasso” para retribuir o retrato com que um dia, sem dúvida, se iria parecer.

Escrito em 1933 por Gertrude Stein (1874-1946), A Autobiografia De Alice B. Toklas, editado pela Ponto De Fuga, com tradução e notas de Nuno Quintas, foi de longe o seu livro que mais visibilidade alcançou.

Rue du Fleurus, 27. É esta a morada central de toda a movida artística parisiense narrada nesta autobiografia camuflada a duas vozes. Duas vozes que acabam por ser uma só, a sua, porque a de Alice, sua companheira por mais de três décadas, e também escritora, é pura ficção. Não há sequer qualquer espécie de simbiose entre as duas neste processo de escrita. Talvez Stein se tenha munido desta camuflagem para se permitir um certo distanciamento nas alturas em que o entendeu urgente e necessário, se bem que, por outro lado, é notório que a imbuiu de um egocentrismo exacerbado. Mas, egocentrismo à parte, é graças a este livro que podemos sorver sofregamente uma geração brilhante que incluiu Matisse, Cézanne, Isadora Duncan, Scott Fitzgerald, Eliot, Hemingway, Guillaume Apollinaire, Derain, Djune Barnes, Max Jacob, Erik Satie, Rousseau, Juan Gris, Picasso, Cocteau, Tristan Tzara, Pound, Man Ray, Gide, Lipschitz, Mabel Dodge, Bowles, Crével, Elliot Paul, Leonard Woolf, entre muitos mais.
O ponto de encontro de todos eles era habitualmente nos serões de sábado, altura em que Stein os recebia no seu atelier, na casa cuja salinha de jantar era forrada a livros e a quadros, iluminada por grandes luminárias a gaz com a salamandra de ferro fundido, o tinteiro, a mesa larga com pregos de ferradura e seixos e pequenos suportes de cachimbos, que mais tarde se confirmaram ser peças extraídas dos bolsos de Stein e Picasso. “Os quadros eram tão estranhos que o instinto leva-nos a olhar primeiro para qualquer coisa em vez delas”, escreve a própria na voz de Alice divagando acerca de Miss Stein. “Miss Stein sentava-se perto da salamandra numa bela cadeira de costas altas, e deixava as pernas calmamente penduradas, era uma questão de hábito (…)”

Alice B. Toklas era quem datilografava as obras de Stein, quem lambia todas as montras em Bodley Head enquanto a companheira conversava com o editor John Lane. Era quem cozinhava, quem arcava com os afazeres domésticos, quem aturava as Madames todas. Desde a mulher de Van Dongen que se alimentava a espinafres, a Madame Matisse, Miss Bromfield, Pauline Hemingway, Mrs. Ford Madox Ford, Marcelle Braque.

É importante salientar o snobismo, a visão cómica e ridicularizada com que descrevia a grande maioria das mulheres retratada neste mundo artístico predominantemente masculino. Praticamente a todas, à exceção de uma ou outra, é-lhes apontado uma série de fragilidades, tiques ou debilidades. Se Madame Matisse tricotava luvas de lã, Fernande que além de estar sempre mal-disposta, só tinha três assuntos: perfumes, maquilhagens e chapéus. “Deambulei e observei a multidão, nunca imaginara que pudesse haver tantos géneros de homens a produzir e a observar quadros. Na América, mesmo em São Francisco, habituei-me a ver mulheres em exposições e alguns homens, mas aqui havia homens, homens, homens, às vezes mulheres. Habituei-me depois a esta proporção. Num destes grupos de cinco ou seis homens e duas mulheres vi os Picassos, ou seja vi Fernande com o seu gesto característico, um indicador esticado com anel. Como descobri depois ela tinha o indicador napoleónico tão comprido se não um tudo-nada mais comprido do que o médio, e sempre que ela estava animada, o que afinal de contas não era muito frequente porque Fernande era indolente, ficava sempre esticado.”

Por outro lado, sempre que caracterizava as mulheres que admirava, atribuía-lhe uma qualquer característica masculina, que as enaltecia e dignificava de alguma maneira, como é o caso de Mildread Aldrich, jornalista norte-americana, “uma mulher robusta e vigorosa com um rosto de George Washington.” A respeito de si própria escreveu na voz de Alice “Quando Gertrude Stein era bastante nova o irmão observou que certa vez que, tendo ela nascido em fevereiro, era muito parecida com George Washington, era impulsiva e insistente.” E também é curioso recordar que sempre que se correspondia com a secretária de Eliot, ambas se tratavam cordialmente por Sir. “Começou então uma extensa correspondência, não entre Gertrude Stein e T. S. Eliot, mas entre a secretária de T. S. Eliot e eu própria. Dirigiamo-nos uma à outra como Sir, eu assinava A. B. Toklas e ela assinava com as iniciais.”
 
Natural da Pensilvânia, Gertrude era a mais nova dos cinco filhos de um casal judeu de classe média alta. Deu graças por não ter nascido numa família de intelectuais e não completou nenhum curso superior. Num dos dois cursos que frequentou escreveu no enunciado do exame “lamento muito, mas não tenho mesmo vontade de fazer um exame de filosofia hoje.” É este o spleen desta autobiografia. Uma autobiografia que é um bilhete de identidade timbrado a humor, ironia, cosmopolitismo, mas isento de qualquer emoção. E, sem dúvida, talvez seja perante esta isenção de sentimentalismo que Stein se afirmou enquanto feminista. Considerava-se a ela própria um génio, dizia ter sido ela a ensinar Hemingway a escrever e nunca lia em francês embora achasse que “todas as estradas nos conduziam a Paris”. Sobre o facto de nunca ter lido nada na língua de Marie Antoinette, Stein escreveu: “sinto com os olhos e não me faz diferença nenhuma a língua que ouço, não ouço uma língua, ouço tons de voz e ritmos, mas com os olhos vejo palavras e frases e para mim só existe uma língua e é o inglês. Uma das coisas que tenho gostado em todos estes anos é de estar rodeada de pessoas que não sabem inglês. Deixou-me muito mais a sós com os meus olhos e o meu inglês. (…) gosto de estar a sós com o inglês e comigo.”

Esta ideia de se demorar na musicalidade da língua quase ao jeito de uma canção de embalar ou de uma ladainha está presente também no seu livro infantil O Mundo Redondo (1939) editado igualmente pela Ponto de Fuga ou na sua poesia. É em poemas como Vollard e Cézanne, A long dress, Red Faces ou América que nos damos conta do quanto ela é vincadamente sonora, do quanto ela se repete e repete.

Recordemos o poema que dedicou a Pablo Picasso e vejamos como num texto tão extenso, a partir de poucas frases, mas graças ao recurso repetitivo elas se desdobram, contorcem, alongam. O leitor sente-se como que hipnotizado pelo som, pelo estilhaço e vibração das palavras esquecendo-se ao mesmo tempo que elas são palavras. “Uma vez uma vez uma vez era uma vez o que/ era uma vez uma vez uma vez era uma vez vez/ uma vez. / Vez e em vez. / E assim se fez. / Um/ Eu aterro. / Dois. / Aterro. / Três. / A terra. / A terra. / Três. / A terra. / Dois. / Aterro. / Um. / Eu aterro. / Dois. / Eu te erro. (…)”

Este poema, como tantos outros, em que a repetição é uma constante, demonstra o quão incisivas as palavras de Stein podem ser. O quão corpulentas, hercúleas, vorazes e resistentes. O quão maliciosas. É pela repetição que a sua narrativa se distingue tornando-se especialmente na poesia ainda mais fluída e ininterrupta. Debrucemo-nos agora em O Mundo Redondo, na história da pequena Rosa, o primo Willie, os cães Pépé e Love. Aqui vamos cair nos braços dessas repetições inesgotáveis, mas nunca por nenhum momento nos deixaremos de sentir em harmonia com elas.
Poder-se-á com isto chegar à conclusão, que na poesia as repetições espelham a inquietude, a malicia, o opressivo, o seu toar excêntrico, mas na prosa, mais precisamente neste livro para crianças, elas permitem-nos construir um mundo redondo só nosso. Talvez se possa concluir que na sua poesia as repetições são como um colete de forças onde a escritora se tortura e nos tortura também. Porque só num colete de forças as palavras pelo desespero podem dar lugar a novos acordes e esses novos acordes poderão dar lugar a novas rosas, a novos espinhos, a novos duendes, a novas montanhas.

“Quantos minutos andam à roda para fazer um segundo quantas horas andam à roda para fazer um minuto quantos dias andam à roda para fazer uma hora quantas noites andam à roda para fazer um dia e será que a Rosa foi encontrada. Nunca se tinha perdido e, portanto, como é que podia ser encontrada mesmo que tudo andasse à roda e à roda.”

Quantas Steins são necessárias para nos fazerem andar à roda? Quantas Steins são precisas para fazer andar uma cidade à roda? Um teatro, uma geração, uma mentalidade, um jornal? De que carne é feita afinal cada cidade, cada teatro, cada geração, cada mentalidade, cada jornal? E com que novas veias e nervos se inaugurará a cultura? Com que ânsia? Quantas Steins são necessárias para que um país se encontre? Para que as livrarias nunca sucumbam, para que a arte resista?

Se Matisse tentou criar um género de arte que todos pudessem entender, Stein escreveu esta autobiografia para todos facilmente percetível. Descreve em pormenor a personalidade irascível das suas bonnes, a relação com Leo, o irmão com que morava em Paris e com quem partilhava o gosto pela arte, as tricas conjugais dos génios com que se dava, a ameaça dos alemães sobre Paris, a edição dos livros que escreveu ou que não chegou a terminar, o ambiente político e social entre e durante as duas grandes guerras, os jornais e livros que lia, as viagens, a casa de férias em Itália perto de Florença. Stein passa a pente fino em cada capítulo a sua vida e a dos muitos artistas com quem se dava. Este pendor biográfico está presente também em The Three Lives ou The Making Of Americans por exemplo.

Acontece que estes livros, ao contrário da presente autobiografia, nunca alcançaram grande sucesso, mas este foi um sucesso de vendas. Embora esteja muito bem organizado, com uma lógica coerente, embora o jogo de egos tenha funcionado em pleno e haja toda uma ordem, um seguimento, a certa altura o leitor ficará com a sensação de não estar na presença de uma escritora que se debruça poeticamente sobre a sua vida, mas sim de alguém que nos oferece com carisma um ego e uma geração numa salva de prata. Uma geração enluvada, magnífica, irrepetível. Mas talvez seja apenas e só por isso que continuamos atentos a cada capítulo, ao seu tom entusiasmante, sulfúrico, tantas vezes indiscreto e caricatural. Mas será por isso, e só por isso, que a narrativa não esmorece. Porque os seus intervenientes suscitam no leitor a mais açuladora curiosidade.

Quem é que não vibrará ao adivinhar, através das descrições de Stein, o atelier de Van Dongen ou a casa de Matisse? Quem é que não ficará empolgado por ficar a conhecer melhor os motivos da inimizade entre Hemingway e Cummings ou de Picasso com Max Jacob? Quem é que não se deliciará em saber os temas de conversa entre Scott Fitzgerald e Stein ou o porquê das ciumeiras entre Picasso e Juan Gris? Ou como teria sido a primeira vez que Stein, na altura muito amargurada por não ver o seu trabalho reconhecido, conheceu pelas mãos do escritor americano Sherwood Anderson, Ezra Pound com quem mais tarde cortaria relações?

“Gertrude Stein não queria voltar a ver Ezra. Ezra não percebia bem porquê. Encontrou Gertrude Stein certo dia perto dos jardins do Luxemburgo e disse, mas eu quero voltar a vê-la. Lamento muito, retorquiu Gertrude Stein, mas Miss Toklas está com uma dor de dentes e andámos ocupadas a apanhar flores silvestres. O que era tudo literalmente verdade, como toda a literatura de Gertrude Stein, mas perturbou Ezra, e nunca mais o vimos.”

Daí a figura de Stein como mediadora se sobrepor ao de narradora. Daí a sua figura ser mais a de uma mulher extraordinária, dotada de uma personalidade incrível, do que a de uma escritora brilhante. Claro que não há como não ficar indiferente a todas estas personalidades, aos seus encontros, ao editor de Stein, John Lane, aos Crownshield que fundaram a Vanity Fair, às tricas com a livreira também lésbica Silvia Beach. Mas sublinhe-se que esta autobiografia lucra não somente e apenas por isso, mas muito por isso.
Nos seus relatos somam-se dezenas de situações caricatas e divertidas. Lembremo-nos do banquete que os Picassos deram a Rousseau; da bebedeira de Marie Laurencin, importante figura do grupo vanguardista de Paris e musa de Apollinaire nesse jantar; das lições de francês de Fernande a Alice; das vezes em que Fernande lia em voz alta as histórias de La Fontaine para entreter Stein enquanto Pablo Picasso a retratava durante horas. Ou recordemos as vezes em que Fernande e Picasso, depois de separados, disputavam os suplementos de banda desenhada dos miúdos Katzenjammer que Stein recebia; a vez em que Alice cortou o cabelo a Stein fazendo-a lembrar a Sherwood Anderson a figura de um monge, ou o almoço em que Stein sentou cada pintor de frente para o seu próprio quadro. Há também o episódio em que Stein evoca a altura em que Picasso começou a aprender o alfabeto russo e a usá-lo em alguns dos seus quadros ou aquele em que William Cook a ensinou a conduzir num velho Renault de dois cilindros anteriores à guerra, e ainda as aventuras no seu velho Ford onde, à falta de gasolina, ficava encalhada em bermas de estrada ou entre elétricos em pleno Champs Elysées. 

“Quando Ford Madox Ford editava a Transatlantic Review disse certa vez a Gertrude Stein, sou um escritor bastante bom e um editor bastante bom e um homem de negócios bastante bom mas considero muito difícil ser as três coisas ao mesmo tempo. Sou uma dona de casas bastante boa e uma jardineira bastante boa e uma bordadora bastante boa e uma secretária bastante boa e uma editora bastante boa e uma veterinária de cães bastante boa e tenho de fazer todas essas coisas ao mesmo tempo e considero difícil por cima disso ser uma escritora bastante boa.”

Como se vê, são histórias que se vão avolumando, embora todas elas sejam narradas no mesmo registo espartilhado, sufragista e cromático. É, sem dúvida, um discurso avesso à euforia. A sua cor poderia ser a mesma com que Picasso a retratou, um misto de cinzento-acastanhado, mas acima de tudo, e apesar da natureza informal e acessível deste registo narrativo há uma espécie de ritual sarcástico e carismático que sobressai em cada descrição. Seja ela sobre a batalha do Marne, a escola de Matisse quando ele descobriu um húngaro esfomeado a saquear o pão que servia para apagar os desenhos a pastel dos alunos, sobre uma simples cadeira Luís Quinze, um soufflé, ou a “grande e imponente Smith Premier” onde tanto gostava de escrever.