23 de março de 1955. Na hora de despejar os mortos da sua última morada

23 de março de 1955. Na hora de despejar os mortos da sua última morada


Numa hasta pública muito concorrida, levada a cabo no Pavilhão dos Desporto do Parque Eduardo VII, durante horas a fio leiloaram-se jazigos semidestruídos e outras construções que serviam para homenagear os desaparecidos mas que tinham passado o prazo de validade. O dinheiro correu a rodos. A morte estava pela hora da morte…


O professor Joaquim José Ventura da Silva morava na Rua 8. Ou melhor: moravam aí, descansadamente, os seus restos mortais. Quem o conheceu – em vida, claro – traçava dele um retrato encantador de homem zeloso, inteligente. “As suas obras testemunham a sua perícia e os seus numerosos alunos abonam o seu desvelo praticado na sua profissão”, podia ler-se no seu jazigo, mandado erguer pela filha a 5 de dezembro de 1849. Na simplicidade da tumba, desenhava-se um livro aberto.

O professor Joaquim José Ventura da Silva não teria lugar ao descanso eterno que é devido a pessoas de bem. No dia 23 de março de 1955, no Pavilhão dos Desportos, ali ao topo do Parque Eduardo VII, em Lisboa, realizou-se uma hasta pública para a concessão de vinte lotes de terreno no 1.º e 2.º cemitérios, do Alto de São João e dos Prazeres, destinados à construção de jazigos particulares. O professor Joaquim José Ventura da Silva iria ser simplesmente extraído da sua última morada como quem arranca um dente. Fazia parte de um plano para a destruição de vinte túmulos que tinham caído nas mãos da administração pública. Com eles, seriam removidos oito corpos e e 51 ossadas. Na grande maioria desses túmulos, as dedicatórias tinham-se tornado ilegíveis por via da falta de cuidado e da erosão do tempo. Nem idades, nem profissões, nem indicações da categoria social de mortos esquecidos. Gente que deixara definitivamente de existir. Chegara a hora de desaparecerem para sempre da face da Terra.

Varridos As ruas 2, 8, 9, 17 e 19 do Cemitério dos Prazeres seriam as mais afetadas. Nesta última, ainda se mantinha em pé, com a firmeza possível, uma cruz de pedra imitando ramos de árvore entrelaçados e ornamentado com uma dália esculpida ao pormenor. Ao contrário de muitos outros, não era lugar para encontrar uma desconhecida. Dona Carolina das Dores Sousa Vieira, extremosa mãe e mulher, era homenageada com uma quadra. “Não te esqueças lá no céu/Quem na Terra soube amar-te/Quem na Terra não se esquece/Deste jazigo ofertar-te”. Carolina morreu a 20 de setembro de 1860. O poema, esse, não tem métrica nem grande arte, além de possuir um toque de egoísmo ao pretender que a senhora, lá no lugar onde tenha ido parar, céu ou não, assumisse a dívida de gratidão para quem lhe erigiu o fúnebre monumento.

Tal com acontecia com o professor José Ventura da Silva, Dona Carolina das Dores de Sousa Vieira iria ser despejada para que no lugar onde morava o que sobrava de si se erguesse um jazigo mais moderno, mais imponente e, sobretudo, pago. Porque a morte é inevitável mas não é de borla. Principalmente para quem quer ter uma casinha onde as almas dos defuntos façam aquilo que apetece às almas.

Rua 8 À sombra de um cipreste, um jazigo com direito a brasão. Foi mandado erguer por D. Tomás da Cunha Henrique de Melo e Costa – falecido a 10 de Outubro de 1840 – e consagrado a sua esposa, Dona Ana Felízia Almeida Quadros e Lencastre. Pois muito bem, nem um Lencastre, dos Lencastres que se instalaram em Portugal vindos da velha Inglaterra para lá da Mancha, escapava à fúria da burocracia e à avidez do dinheiro. O município precisava de vender terrenos, seria nos Prazeres que se sacariam uns bons molhos de notas, desocupando as campas nas quais já ninguém deixava flores para que os novos ricos pudessem erigir pirâmides e mastabas sublinhando a sua transformação de carne em espírito.

Pacientemente, o meirinho, ia descrevendo os blocos disponíveis que iam sendo, por sua vez, adquiridos por quem tinha posses para tal. O jazigo do Marechal de Campo José Tomás de Miranda, nascido a 2 de maio de 1789 e falecido a 23 de outubro de 1860, ficava na Rua 17. As inscrições eram pobres e não faziam justiça aos seus feitos militares. Quanto à estrutura, era o mais simples possível, revelando a contenção e ausência de vaidade ou do morto ou de quem lhe levantou o jazigo: uma simples espada ornada de flores. Também o Marechal marcharia como os outros, ossadas atiradas para uma vala comum, como se para nos recordar a todos que o seu tempo havia passado e chegara a hora de obliterar a memória.

Outro militar, este com habitação na Rua 9, Pedro H. Andrés Gitton, nascido em França em 21 de maio de 1797 e falecido em Lisboa a 2 de agosto de 1868, iria ser despejado da sua última morada. Sem cerimónias. Levaria com ele as sobras da esposa, Dona Maria Margarida Gitton.

A hasta foi muito concorrida. Cerca de 70 candidatos a compradores, com muitos construtores pelo meio. Houve dinheiro à tripa forra: um jazigo na Rua 2 foi arrematado por 50.160$00; na Rua 3, dois outros foram despachados por 21.240$00 e por 25.000$00, respetivamente. Um jazigo, também na Rua 3, começou por ser licitado na ordem dos 1.500$00 e vendido por 10.800$00. Era um jogo duro. Um braço-de-ferro entre compradores decididos a não desperdiçarem a eventualidade de um bom negócio. Os arrematantes assumiam o compromisso das demolições das construções decrépitas e tomaram também a seu cargo a matéria mais sensível, isto é, darem guarida perpétua aos antigos inquilinos, algo que geralmente consistia em despejar o que sobrasse deles para os ossários municipais.

Já o dia ia longo quando os leiloeiros decidiram que a hasta seria interrompida e reatada no dia seguinte. Irritaram-se vários comerciantes que tinham vindo de propósito de fora de Lisboa. Ninguém surgiu a reclamar direitos sobre os jazigos postos à venda. Ou as famílias tinham acabado ou as ossadas dos avós não lhes diziam nada. Chegara o momento definitivo para aquilo que a câmara da capital considerava uma limpeza obrigatória. No fundo foi um último adeus que ficou por dizer…