“Se o Sporting estivesse em quinto lugar ninguém falava”

“Se o Sporting estivesse em quinto lugar ninguém falava”


Rúben Amorim pode ser suspenso de um a seis anos, e o Sporting fala em “fraude”. O caso do treinador faz lembrar a história de Franz Beckenbauer, que venceu o Mundial sem carteira profissional.


É uma velha história, que se repete uma e outra vez. E não é uma realidade exclusiva de Portugal. Corria o ano de 1984, e a seleção da Alemanha necessitava urgentemente de recuperar o ânimo. O jovem Franz Beckenbauer, que pendurara as sapatilhas pouco tempo antes, foi a cara do regresso da Alemanha às vitórias, com o auge na vitória no Campeonato Mundial de 1990. Beckenbauer, no entanto, saltou diretamente dos relvados para o banco, e não consta que tivesse qualquer tipo de acreditação para tal.

Agora, quase 40 anos depois, todos os olhos estão postos no Sporting, em Rúben Amorim e na Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), que fez uma participação contra os leões e o seu técnico, em março de 2020, que foi agora recebida pela Comissão de Instrutores da Liga Portuguesa de Futebol. Em causa, acusa a ANTF – que, contactada pelo i, não quis prestar qualquer declaração – está uma irregularidade na contratação do treinador, que, por não possuir o curso de nível IV na altura – entretanto inscreveu-se nesse curso, em janeiro de 2021 –, foi inscrito como treinador-adjunto, apesar de, na prática, assumir o cargo principal no banco. A Associação acusa o clube de “fraude” e pediu ainda um castigo que poderá ir de um a seis anos de suspensão para Amorim.

Uma situação que António Simões, antigo jogador do Benfica, estranhou. “Se o Sporting estivesse em quinto lugar, ninguém falava. Como vai em primeiro, é uma chatice”, começou por referir, em declarações ao i, ironizando ainda: “Como o rapaz não tem mais um degrau feito e está em primeiro lugar, parece que isso é uma chatice. Aparentemente, só deve estar em primeiro quem tem os degraus todos.”

“Não percebo muito bem é que haja tolerância anteriormente para o mesmo caso, e agora parece que há que fazer cumprir”, referiu ainda Simões, que, apesar de defender que se cumpra a lei, admite achar que esta discussão vem “num tempo completamente desenquadrado, depois de mais de 20 jornadas”, indo ao encontro das declarações dadas por Gonçalo Almeida, antigo advogado da FIFA, que referiu à Lusa achar que “não seria a decisão mais acertada”, já que a liga aceitou a inscrição de Amorim no início da temporada.

Também crítico da polémica foi Dani, antigo jogador da seleção nacional, que possui ele mesmo os cursos de treinador, apesar de não ter praticado. “Devemos é apoiar em vez de criar barreiras e dificultar o acesso à carreira de treinador”, começou por referir ao i, classificando estes cursos como de “acesso difícil”. Na calha para a profissionalização dos treinadores, defende, deveria estar também uma “avaliação da carreira como futebolista, o grau de profissionalismo, os clubes em que se jogou, as competições onde se participou, as internacionalizações – que já existe – e os treinadores com quem se trabalhou”. Sobre o caso específico de Rúben Amorim, Dani não tem dúvidas: “É um exagero isto que estão a fazer, e tem muito a ver com o sucesso alcançado por ele. Por isso, estão agora a tentar minar o trabalho dele. Está mais que provado que tem as condições para ser um treinador top, e não há orgulho nisso, mas sim um monte de barreiras que ele já teve para conseguir tirar os vários cursos, e agora mais uma barreira que lhe estão a meter no caminho.”

A situação de Amorim assemelha-se a dezenas de outras, como acusa o próprio clube leonino em comunicado, apontando o dedo a um “tratamento díspar e enviesado em desfavor do Sporting CP”.

Não são poucos os exemplos de treinadores que assumiram os cargos sem ter as qualificações necessárias, nem são novidade, e a própria ANTF já se pronunciou várias vezes nos últimos anos sobre estas irregularidades. Jorge Costa, por exemplo, saltou diretamente dos relvados do FC Porto para o banco do Sporting de Braga, em 2007, com apenas seis meses de diferença. Silas, Sérgio Vieira, Pepa, e Petit são alguns dos nomes a indicar que, pelo menos em 2018, treinavam diferentes equipas nacionais sem, no entanto, terem o curso de nível IV. Ainda na presente temporada se encontram exemplos de treinadores sem o curso de nível IV, como é o caso de Luís Freire, do Nacional da Madeira, e Mário Silva, ex-treinador do Rio Ave. O Sporting CP fez questão de relembrar a existência destes casos, em comunicado oficial, e acusa o timing da participação. “[…] Não podendo a Sporting SAD deixar de sublinhar a sua perplexidade pelo facto de o mesmo [a acusação] surgir quando a sua equipa se encontra em primeiro lugar na Liga”, disparou a equipa de Alvalade.

 

Outros visados

Neste processo, também o Sporting de Braga foi acusado pela ANTF, por ter colocado Custódio no lugar de treinador principal, quando o antigo jogador não tem as qualificações necessárias para tal. Neste âmbito, no entanto, os dois casos foram tratados de maneiras diferentes, não sendo Custódio acusado diretamente, e passando o castigo por uma multa e interdição do estádio de um a três jogos. A diferença no tratamento reside no facto de Custódio ter sido inscrito na Liga de Clubes como delegado, ao passo que Amorim foi inscrito com o título de treinador-adjunto, o que, na interpretação da Associação dos Treinadores, infringe diferentes artigos do regulamento disciplinar, segundo começou por anunciar o jornal online Maisfutebol.

A “guerra” contra Rúben Amorim, no entanto, não é nova. Já em 2019, o treinador viu-se num debate com a Associação de Treinadores, enquanto técnico do Casa Pia, que acabou com uma sanção do Conselho de Disciplina da FPF. Naquele ano, Rúben Amorim estava ainda a tirar o curso de nível I, e era “treinador estagiário” no clube. Acontece, no entanto, que foi apanhado a dar indicações em dois jogos, o que valeu uma condenação ao Casa Pia – perder seis pontos, bem como pagar uma multa de 14 mil euros. Já Rúben Amorim ficaria impedido de se inscrever como treinador profissional durante um ano, e também teria de pagar uma multa de 2600 euros. A sentença, no entanto, foi anulada pelo Tribunal Arbitral do Desporto.