Crime é deitar vacinas para o lixo


Escandaloso foi o que aconteceu com as 24 vacinas que foram esquecidas no frigorífico do INEMe depois deitadas fora, por se encontrarem fora do prazo de validade.


Agora que os números de infetados, internados e de mortes estão a estabilizar, outro tipo de notícias ganharam foco e passaram o ser o espaço de denúncia e condenação da administração indevida de vacinas. O tom de acusação com que são noticiadas as situações em que se verificaram vacinações a utentes que não constavam das listas emitidas pelas autoridades competentes, pressupõe uma condenação implícita à ética e comportamento criminoso de quem é denunciado. O contexto em que é tomada essa decisão cai para segundo e terceiro plano, e o que realmente dá corpo à notícia é a confirmação de haver um novo crime em Portugal – furto e uso indevido de vacinas.

Curioso é que muitos destes casos nem sequer foram para os perpetradores se autoimunizarem e ficarem protegidos do vírus covid-19. Em muitas situações, pode-se constatar que após verificação de sobra de doses de vacinas, tomaram a decisão de administrarem as mesmas a outros utentes que poderiam beneficiar desta proteção e que certamente corriam riscos acrescidos no dia-a-dia. Não li, nem tive conhecimento de um único caso em que tivesse sido “desviada” uma vacina para alguém que estivesse em casa, em confinamento, e por isso com menor risco de exposição ao vírus.

Recordo o caso do padre de Alfanena que, num instante, passou a ser notícia nacional e a prestar declarações em direto, perante jornalistas que o interrogavam em tom crítico e desdenhoso. Com sete vacinas que restaram, após a vacinação de 127 utentes e de 85 funcionários do Centro Social Paroquial de Alfanena, o padre teve que decidir, em tempo útil, o que fazer com as mesmas, para que não houvesse desperdício. Refira-se que a validade das vacinas que já foram descongeladas e os frascos abertos é de seis horas. Caso não sejam administradas neste período de tempo, devem ser desperdiçadas. Posto isto, o que justifica pôr um padre em direto e acusá-lo de querer favorecer a sua mãe de 65 anos que, por acaso, até passa grande parte do tempo no centro social e já tinha substituído funcionários no tratamento dos utentes, por diversas vezes? Já para não falar da costureira que trata das roupas dos que estão no lar e que, por essa razão, tem de estar em contato direto e fazer deslocações ao centro social. Nada me parece absurdo nesta situação, quando o próprio padre nem sequer foi vacinado. E ainda que fosse…

Escandaloso foi o que aconteceu com as 24 vacinas que foram esquecidas no frigorífico do INEM e depois deitadas fora, por se encontrarem fora do prazo de validade. Já sob investigação por suspeita de administração indevida ao marido de uma médica, a decisão de não administrar as sobras pode muito bem ter resultado desta fiscalização exacerbada por parte dos órgãos de comunicação social, que não só relatam os episódios, mas assumem-se como a primeira instância de condenação em Portugal. Para isto utilizam a já habitual adjetivação e expressões como: “uso indevido” – determinado por quem?; “acusado” – em que tribunal?, “falsificado” – com que meios de prova?; “a prática de crime” – determinado por que entidade de investigação criminal?

Os portugueses deixaram de recear os bancos dos tribunais. Hoje, o julgamento é feito na praça pública, consoante o número de notícias que são publicadas e o tom incriminatório subjacente nas linhas do texto. A este propósito, são vários os exemplos que grassam pelas páginas virtuais e em papel. Infelizmente, com a violação sistemática dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos visados.

Este condicionamento de decisão e de comportamentos que derivam do perigo de se ser julgado e, de imediato, condenado, ainda antes de se chegar às instâncias judiciais, tem sido uma norma que incentiva à não exposição e à não decisão, mesmo que esta última seja fundamentada e segura da sua necessidade.

Ainda a este propósito, das vacinas e das administrações indevidas, como se se tratasse de um mercado negro, a polémica que se instalou à volta do vereador da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Castro, que tinha a tutela da proteção civil e da higiene urbana, entre outras, e que se demitiu por lhe ter sido administrada a vacina, em simultâneo com a diretora da Higiene Urbana, o comandante e o subcomandante do Regimento de Sapadores de Bombeiros e o comandante da Polícia Municipal foi sobejamente desmesurada e dispensável. Ao fim de um ano de pandemia na rua, estas pessoas, responsáveis pelo planeamento e pela aplicação de medidas securitárias e de higiene sanitária na cidade, não deveriam ser acusadas de ficarem com as sobras de vacinas, depois de terem sido vacinados todos os utentes e funcionários dos lares de Lisboa. Perante um excesso de 126 vacinas acumuladas ao longo de vários dias, faria todo o sentido que indivíduos com estas funções fossem vacinados, juntamente com os 56 bombeiros voluntários e os 42 elementos da Polícia Municipal, muitos deles envolvidos neste processo de vacinação dos lares.

Condenável são as seis mil doses de vacinas desperdiçadas, somente porque ainda não foi emitida uma norma por parte da Direção-Geral de Saúde a indicar que em vez das 5 doses que devem ser retiradas por frasco, se deve proceder à retirada da sexta dose com uma agulha adequada, já que o depósito do frasco obriga a esta adaptação. Isto sim, é condenável, porque ninguém pode usufruir destas doses.

Todos vamos ter que ser vacinados, mais dia, menos dia. Este alarido sobre quem é o primeiro e quem não é, atingiu o absurdo, principalmente quando estamos a falar de um sistema que ainda está em fase embrionária e de adaptação às dificuldades que vão surgindo. Criminoso é deitar vacinas para o lixo.

 

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