Já a ninguém basta uma discussão à mesa do jantar. Não aquece nem arrefece. Parece só outro episódio da mais enfastiante telenovela. De pouco serve atirar um prato à parede, em termos de efeito dramático, pois o público exige um drama que se repercuta à escala planetária, e num quadro icónico, entre figuras de representação de uma época. E talvez porque a religião perdeu também a sua força para organizar os impulsos e os tumultos interiores, só resta a moral como sistema totalitário, onde todos vêm uma oportunidade de coagir a realidade a ponto de esta se enquadrar numa ficção maniqueísta. A verdade é que, como sabemos, as coisas tendem a ser bastante complicadas, e quem escava o passado vê como certos cadáveres se tornaram raízes que alimentam e até ulceram a imaginação de cada um de forma bastante complexa e diferenciada. Muitas vezes a verdade é uma miragem absoluta. E quando está em causa a intimidade de personalidades famosas, é difícil conceber um espaço mais agónico, e que mais armadilhas de percepção lance a um público confiante de que sabe apreciar a validade das provas que lhe são submetidas. É esse o calcanhar de Aquiles de toda esta mitologia, a ideia de uma visibilidade integral, a de que a verdade virá ao de cima por sobre-exposição dos detalhes da vida privada desses que, por terem feito um pacto demoníaco com a fama, nunca puderam defender-se desse olhar insaciável do público. Um novo documentário em quatro partes, estreado esta segunda-feira na HBO Portugal, examina as alegações de abuso sexual feitas contra Woody Allen de forma exaustiva, mas decididamente parcial. Os realizadores Kirby Dick e Amy Ziering não têm qualquer pejo em assumir o papel de advogados de acusação em nome do clã Farrow, dando voz à versão da história contada por Dylan, a alegada vítima, e Mia, que manteve com o cineasta uma relação que durou entre 1980 e 1992. A investigação foi feita ao longo de três anos, e é indiscutível que se trata de uma peça de engenharia emocional à qual é difícil ficar indiferente, até pela quantidade de material inédito, álbuns de fotografias e filmes caseiros, a partir do qual elabora um caso que, sem nunca questionar a sua tese, pretende avassalar o público. Ora, uma das principais fragilidades não se prende tanto com a persuasão narrativa do documentário, mas com o ângulo de um documentário que nunca questiona regime mediático que permite que um escândalo desta natureza se perpetue sem nunca apontar um dedo acusador à própria sociedade que se sente animada a espreitar a intimidade, sem nunca reconhecer fronteiras para a decência, limites para essa ânsia de penetrar a intimidade das celebridades, sendo açulada por um suposto desejo de descobrir a verdade. Mas a questão que então se coloca é esta: Como, quando, até que ponto é lícito, um dever, ou ilícito, buscar a verdade, uma verdade seja ela qual for, e que pode tornar-se meramente um pretexto, uma justificação para continuar a alimentar uma obsessão, uma curiosidade insaciável e até doentia? Sophie Gilbert, num artigo publicado na The Atlantic, explicou o desconforto que provoca Allen v. Farrow, isto numa análise que não se foque apenas no trilho de migalhas ou provas e na trama que os realizadores delineiam, e que nos conduzirá invariavelmente a um severo juízo sobre a conduta de Allen. Desde que foram feitas as revelações sobre os abusos sexuais cometidos por Harvey Weinstein, tendo Ronan Farrow, o filho biológico de Woody e Mia desempenhado um papel central nessas investigações, parece que se franqueou uma nova dimensão para a devassa da vida privada das celebridades, e com base numa purga que deveria ter um papel de correcção dos desequilíbrios de poder na nossa sociedade, deu-se margem para uma cultura justiceira. Mas a história de Dylan Farrow, que tinha 7 anos em 1992, quando disse à mãe que o pai tinha abusado sexualmente dela, como nos diz Gilbert, traz à luz aspectos particularmente arrepiantes nesta fantasia ao mesmo tempo encorajadora e perversa, pois envolve alegações de um trauma doméstico que, nos últimos 19 anos, serviram de argumento e de arma de arremesso entre os dois lados numa guerra de atrito em que o propósito final parece ser condenar ao oposto da fama, à infâmia, portanto, o inimigo. Ou seja, esta é uma guerra dentro dos próprios mecanismos da celebridade, uma forma de degradar a imagem do outro, fazer dele um proscrito, e cuja estratégia recorre também a um efeito de coacção sobre aqueles que continuam a colaborar com Allen. Assim, o documentário lança sobre figuras como Diane Keaton, Javier Bardem e Scarlett Johansson uma sombra, uma tentativa de envergonhá-los por se recusarem a participar na condenação pública de alegações que ficaram por provar em tribunal. Não só isso, mas a própria obra cinematográfica de Allen, às tantas, é aqui reduzida à condição de uma campanha urdida pelo cineasta no sentido de tornar o público leniente em relação às ofensas de que é acusado. Os documentaristas vão ao ponto de pedir a críticos de várias publicações de prestígio que retirem ilações da forma como Allen retrata as relações amorosas nos seus filmes, buscando no negativo destes uma tentativa de se ilibar esteticamente. Como vinca o crítico Daniel Fienberg, na Hollywood Reporter, “por esta altura, poucos dirão que a fixação de Allen em mulheres muito mais novas do que ele (tanto no ecrã como fora dele) não é inquietante, ou que a sua relação com Soon-Yi não deu a essas histórias um enquadramento perturbador. Mas sugerir que os seus filmes ‘prepararam’ o público para aceitar o seu envolvimento com a filha da sua namorada, e que isso foi uma cortina de fumo para o abuso sexual de uma menor, é uma análise psicológica que requer a perícia que um crítico cultural não tem”. Por seu lado, Sophie Gilbert diz que acredita nas palavras de Dylan sobre as agressões a que foi sujeita, mas que, à medida que o documentário avança, há outra coisa em jogo ali, uma guerra de natureza diferente, e que lhe dá a sensação de que aquele continua a não ser o meio para Dylan contar a sua história sem que esta seja explorada.
Podíamos ceder aos apelos de Kirby Dick e Amy Ziering, traçar uma cronologia dos acontecimentos, e não há dúvida de que as revelações feitas pelo seu documentário são suficientemente degradantes para corroer ainda mais a reputação e o carisma do realizador que dominou o imaginário nova-iorquino nas décadas finais do século passado. Acontece que aderir a esse exame, por mais escrupuloso e detalhado que seja, é aceitar o convite para um jogo demasiado perigoso, e no qual devemos começar por nos perguntar que capacidade temos nós para aferir sobre a veracidade daquilo a que estamos a ser expostos, ainda para mais quando isso é feito num registo que não se exime de apelar à emoção e a um desejo de vingar as vítimas. De resto, é importante frisar que esta dupla de realizadores chega a este insolúvel conflito depois de uma década em que foi ganhando balanço na sua cruzada para expor as falhas institucionais no confronto e punição de casos de abusos sexuais, numa perspectiva em que a arte está ao serviço do activismo, esse que está comprometido em dar voz às vítimas. Começaram por denunciar os podres nas hierarquias militares, em The Invisible War (2012), depois nos campus universitários, em The Hunting Ground (2015) e, no ano passado, na indústria da música, em On the Record. Só que o conflito entre Allen e Farrow desenha-se, ao mesmo tempo, em duas frente: numa primeira envolve alegações numa zona de sombra, terrivelmente privada, mas que, numa segunda esfera se repercutem publicamente, e entrelaçam-se nos vícios do próprio regime mediático, na forma como a cultura tem evoluído, tornando-se mais exigente nuns aspectos, mas também mais fácil de manipular. Depois de um período idílico que durou vários anos, a relação de Woody e Mia foi tendo alguns percalços, e o documentário dá a entender que, a certa altura, o cineasta desenvolveu uma fixação pela filha que os dois adoptaram, Dylan, e que tem hoje 35 anos. A relação foi sempre bastante peculiar, e se Woody era visita no apartamento de Mia, manteve o seu do outro lado do Central Park, mas chegou a ter uma divisão anexa com beliches para que os muitos filhos adoptados ao longo dos anos pela actriz tivessem onde ficar quando vinham de visita. Ao longo daqueles 12 anos, Farrow entrou em 13 filmes dele, e além de terem tido um filho, Ronan, Allen perfilhou Moses e Dylan, que foram adoptados por Mia já depois do seu segundo casamento com André Previn, tendo sido primeiro casada com Frank Sinatra. Mas a casa que é o cenário central desta intriga é a casa de campo dos Farrow, no Connecticut, onde Allen passou longas temporadas. Quanto ao evento que fez estalar todo o drama, esse ocorreu em janeiro de 1992, quando Mia descobriu um conjunto de polaroides sexualmente explícitas de Soon-Yi Previn, que tinha então 21 anos, tendo ficado lívida ao saber que o namorado mantinha há anos um relacionamento secreto com uma das suas filhas adoptivas. Seis meses depois, uma baby-sitter terá visto Allen deitar a cabeça no colo de Dylan, e quando Mia questionou a filha de sete anos, esta terá confessado que o pai lhe tinha tocado nas “partes privadas” no sótão da tal casa de campo. Allen sempre negou as acusações, mas desde que estas chegaram aos cabeçalhos dos jornais, nunca mais se livrou delas, e tanto ele como Mia tornaram-se alvo de impiedosas investidas dos media, que souberam explorar o antagonismo entre os dois para arrastar amigos e familiares para esta guerra no coração desse inconsciente colectivo que é o espectáculo.
“Sabe, é muito interessante ver quem escolhemos como celebridades e porquê” dizia Judy Davis no papel de Robin Simon, no filme Celebridades (1998), de Woody Allen. “Podemos aprender muito sobre uma sociedade se olharmos para aqueles que ela escolhe celebrar”, adianta. E esta asserção pode ser virada do avesso, se procurarmos retratar a sociedade a partir das pessoas que, depois de celebradas, esta se entretém a odiar e destruir. Na semana em que o escândalo chegou pela primeira vez à atenção do público, estava a decorrer a Convenção do Partido Republicano, e como recorda Sophie Gilbert, não demorou para que a imprensa abandonasse os planos de cobertura política em favor desta salaz alternativa. “Choros e sussurros: A tenebrosa derrocada uma família não-convencional”, lia-se no cabeçalho da revista Time. Em grande medida foi a antecipação das hostilidades fomentadas pela sede de um grotesco conflito que pudesse suplantar os arrufos domésticos em todas as casas da América o que determinou que se estabelecessem dois lados numa guerra em que valia tudo. Os aliados de Allen traçaram de Farrow a imagem de uma mulher viciada em comprimidos e que negligenciava os tantos filhos com que tentava cobrir o seu desamparo, e que estava agora a fazer a cabeça a uma criança de 7 anos para se vingar do namorado que a tinha trocado por uma das suas filhas adoptivas. Quanto aos aliados de Farrow, aqueles que agora, com os ventos favoráveis da era #MeToo, estão a fazer uma última e, porventura, fatal investida para garantir que, aos 85 anos, Allen é finalmente exposto como “o homem desesperado e terrível que sempre foi”, poderão dar-se conta, quando ele morrer, que não lhes resta outra história para contarem sobre si mesmos, e que se condenaram à sua assombração.