Dois dias depois de anunciar o seu regresso à RTP, com uma nova série de documentários que deverá ser emitida daqui a poucos meses pela televisão pública, o antigo jornalista Luís Osório foi alvo de uma sátira impiedosa por parte de Ricardo Araújo Pereira no último programa Isto é Gozar com Quem Trabalha, transmitido pela SIC no passado domingo à noite.
Na origem da sátira esteve uma entrevista conduzida por Osório à ministra da Cultura, Graça Fonseca, para um podcast do Partido Socialista. Num momento insólito de televisão, Araújo Pereira colocou em cima da secretária um par de botas, chamando em seguida a sua cadela, Dona Custódia, uma buldogue francês, para as lamber.
“Lá em casa também tenho alguém que faz este tipo de jornalismo. Reparem bem: um par de botas e, agora, Dona Custódia faz jornalismo”. À medida que a cadela ia lambendo as botas, o dono encorajava-a. “Isso! Tanto jornalismo. Vai ganhar o prémio Pulitzer, a Dona Custódia, não vai?”
“Tens de o processar” Mas, enquanto uns se divertiam com a rábula de Araújo Pereira, os amigos e familiares de Luís Osório reagiam com indignação.
“A partir das dez da noite, o meu telefone não parou de tocar”, revelou Osório na sua página de Facebook, onde as suas reflexões de cariz poético, filosófico e intensamente pessoal lhe valem uma legião de quase 50 mil seguidores. “Já viste? Por favor, não vejas”. Uma das pessoas que lhe telefonaram foi o filho. “Tem 19 anos e estava indignado. ‘Pai, viste o que ele disse de ti? Tens de o processar, pai’”.
O antigo jornalista – começou n’O Jornal, passou pelo Diário de Notícias e foi diretor d’A Capital, diretor adjunto do i e diretor executivo do SOL – confessa que se riu e se comoveu com as palavras do filho. “Depois pensei que não iria pensar mais sobre o tema, mas enganei-me. Tive dificuldade em adormecer. E ao acordar continuei a pensar sobre o assunto”.
Podcast polémico A entrevista à ministra da Cultura é a mais recente do podcast “Política com Palavra”, apresentado como “um programa de entrevistas […] que convida à reflexão sobre vários temas da atualidade” e disponível no site oficial do PS e no canal de YouTube socialista. Por ele passaram quase todos os pesos-pesados do Governo, de ministros como Siza Vieira, Augusto Santos Silva ou Pedro Nuno Santos ao próprio primeiro-ministro.
Curiosamente, nem se trata da primeira polémica a envolver o podcast do PS. Em finais do ano passado, o jornalista Filipe Santos Costa (que Luís Osório veio agora substituir) viu ser-lhe retirada a carteira profissional por conduzir entrevistas que podem ser encaradas como propaganda política ao Governo. “Não está aqui em causa a qualidade do trabalho realizado nem a forma jornalística com que Filipe Santos Costa presta o serviço em causa, com perguntas mais ou menos ‘difíceis’ ou ‘simpáticas’ para com o entrevistado. Mas antes a natureza da relação contratual e a avaliação de uma situação inédita entre nós: saber se um partido político, ainda para mais o partido do governo, pode celebrar diretamente um contrato de prestação de serviços jornalísticos para desenvolver uma estratégia de comunicação do partido e do governo”, disse então a Comissão para a Carteira Profissional de Jornalista. E concluía: “O que o PS pretendeu, com este contrato, foi colocar a independência do jornalista ao serviço do partido do governo para credibilizar e valorizar a mensagem político-partidária”.
Numa altura em que muitos agentes culturais vivem uma situação desesperada por falta de trabalho, o Governo tenta acalmar o setor acenando com apoios. Mas nem todos estão satisfeitos e o próprio António Costa viu-se na necessidade de escrever uma carta aberta ao setor. Face a este contexto, a ministra da Cultura foi uma escolha natural para a entrevista do podcast socialista.
“A ministra da Cultura – do PS – deu uma entrevista a um podcast do PS, que está num canal de YouTube… do PS. Portanto, foi encostada à parede, e bem”, começou por ironizar Araújo Pereira no seu programa.
Em seguida, reproduziu um vídeo com um excerto da conversa entre o jornalista e a ministra.
“Esta semana saiu em Diário da República o anúncio de que há mais apoios para o setor, mas dá-me a ideia de que a senhora ministra não tem sorte nenhuma porque é a ministra do mas: sempre que faz alguma coisa que teoricamente é positiva aparecem logo ‘mas’, ‘mas’, ‘mas, ‘mas’… ‘É pouco’. ‘É de menos’. Como se sente – ou a partir de certa altura começou a ficar tão calejada que já lhe passam ao lado os ‘mas’?”, perguntava Osório.
Enquanto Araújo Pereira escarnecia do tom amigável da abordagem – “Pumba! É o jornalista Luís Osório, não perdoa!” –, no canto do ecrã via-se uma fotomontagem de Osório com a língua de fora, legendada “Luís Lambusório”. Mais à frente, na mesma posição, via-se uma imagem a preto e branco da ministra com as palavras em baixo “Alta Bajulação”, um trocadilho com o programa de Daniel Oliveira Alta Definição.
RAP “desejava humilhar” “Vi com atenção os minutos que Ricardo Araújo Pereira me dedicou no seu programa na SIC”, comentou Osório. “Pensei que podia ser uma brincadeira à volta de como se manipula uma entrevista com alguém para que a entrevista pareça uma coisa que não foi. Corta-se aqui, corta-se ali, juntam-se pedaços que na entrevista vinham separados por muitos minutos, embrulha-se como se fosse a entrevista verdadeira. Pensei que podia ser uma brincadeira para falar do fake, dos movimentos populistas que utilizam esse tipo de recursos que ele, muito bem, critica no Governo Sombra. Mas não. Não era uma brincadeira. Ricardo montara a entrevista com bocadinhos que encaixou como se fosse um puzzle para criar a ideia que desejava. Uma mentira que fez passar por verdade”, denunciou o antigo jornalista.
Em seguida, Luís Osório tentava encontrar uma explicação lógica para aquilo que considerou um ataque brutal que revelou o humorista “em toda a sua grandiosidade”.
“Pensei que podia ser para me ridicularizar, chatear, magoar com o seu sarcasmo e inteligência. Mas não, também não era isso. O sketch acabava com uma cadela, a bela Custódia, a fazer o que eu faço – a lamber os pés a quem passa. Não, ele queria fazer uma outra coisa. Desejava humilhar. Fazer bullying”.
O verdadeiro motivo do sketch de RAP, acredita o antigo jornalista, terá sido um texto publicado por Osório na sua página de Facebook onde afirmava: “O melhor humorista da sua geração é para mim, e sem discussão, Bruno Nogueira”. Nesse mesmo texto, o antigo jornalista lançava algumas farpas a RAP.
“Ricardo Araújo Pereira é um talento. Difícil duvidar disso. É culto e inteligente. Tem bom gosto. Mas, infelizmente, cristalizou no que resulta, no que os canais pagam, no que lhe dá dinheiro. Acontece aos melhores. Quando passam a ser milionários – e Ricardo é milionário tendo em conta os rendimentos no nosso país – passam a ter muito mais a perder do que a ganhar. Deixam como por milagre de ser incómodos. Ou a ser os tipos a quem se convida para que diga mal de uma forma que seja tolerável. Ou a pessoa que já não arrisca determinados assuntos com medo de perder audiências, contratos ou por outra coisa qualquer”.
No entender de Luís Osório, foi este texto, que publicou no Facebook no dia 17 de abril de 2020, “que o fez lançar-me uma fatwa”.
“Mediocridade e falta de respeito” Quem também não gostou da entrevista de Osório à ministra da Cultura foi Albano Jerónimo. Na sua conta oficial do Instagram, onde tem quase 120 mil seguidores, o ator partilhou uma foto de Luís Osório com um nariz de palhaço rabiscado por cima. Por baixo da foto lia-se: “Legitimar a mediocridade e a falta de respeito por todos os agentes culturais deste país. Que triste. Luís ‘Lambusório’ e a sua amiga Gracinha num drink de fim de tarde”.
A controvérsia fez disparar momentaneamente a popularidade do podcast. No YouTube, o episódio anterior conta apenas 30 visualizações, enquanto a entrevista de Graça Fonseca já soma mais de mil – uma fração, ainda assim, da repercussão do programa de Araújo Pereira, que é visto semanalmente por mais de um milhão de portugueses.
Durante a semana passada, Luís Osório tinha anunciado que irá regressar à RTP, com uma série de documentários. “Aceitei o convite para fazer mais uma série de Portugal de… programa em que colaborei em 2013. Passará dentro de uns meses na RTP e será uma produção da Até ao Fim do Mundo, uma das melhores produtoras de televisão em Portugal. Apresentaremos em documentários de 50 minutos portuguesas e portugueses com menos de 40 anos e a sua visão do país. Esta semana filmámos no Alentejo com o maestro Martim Sousa Tavares, uma figura admirável”. Não parece, contudo, haver qualquer relação entre estes programas na televisão pública e as entrevistas para o PS.