Não se sabe exatamente que idade tinha Dominic Ongwen quando foi raptado pelo Exército de Resistência do Senhor (LRA), um sanguinário grupo armado que aterrorizou o Uganda e arredores, a partir dos anos 1980 – algumas fações do grupo continuam ativas, e o seu infame líder, Joseph Kony, está a monte. Sabe-se que Ongwen tinha entre nove e 14 anos e ia a caminho da escola, quando deu por si como carne para canhão do grupo rebelde, subindo pouco a pouco na hierarquia, até se tornar num dos seus dirigentes. Agora, é também a primeira criança soldado condenada por crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional, culpado de infligir a outros o mesmo sofrimento que passou, entre outras atrocidades.
Poderá nunca se saber a real extensão dos crimes deste homem, mas, no início do mês, o ugandês, agora com 45 anos, foi condenando por 70 crimes de guerra e contra a humanidade, cometidos entre 2002 e 2005. As acusações passaram por homicídio, violação, escravatura sexual, casamento forçado, tortura, pilhagem e recrutamento de crianças.
No centro da defesa de Ongwen, que ganhou a alcunha de “formiga branca” estava a noção de que deveria receber clemência pelos crimes que sofreu. Afinal, ele próprio fora privado da sua infância e de uma vida normal, alvo de cruéis exercícios de lavagem cerebral. “Foi uma vítima e não uma vítima e perpetrador em simultâneo”, argumentou o advogado de Ongwen, Krispus Odongo, que pediu a absolvição do seu cliente, considerando que o seu dia-a-dia brutal no LRI afetou a sua saúde mental e capacidade de tomar decisões independentes. Mas isso não comoveu o juiz Bertram Schmitt, que declarou que se estabeleceu a culpa da antiga criança soldado “além de qualquer dúvida razoável”.
A ascensão da “Formiga Branca” Antes do seu rapto, Ongwen parecia uma criança como as outras. O seu tio, Johnson Odong, citado pela CNN, descreveu o sobrinho como “uma criança calma e brincalhona” e o antigo professor da escola primária de Ongwen, P’Atwoga Okello, recordou como este tinha um grande interesse pelas aulas de dança cultural “e por outras áreas das artes”.
No entanto, após ser forçado a entrar nas fileiras do LRA, o Ongwen divertido e interessado por dança desapareceria. Através de rituais sádicos e espancamentos, muitos conduzidos por Vincent Otti, mentor do ugandês, este renasceria como o cruel e sádico “Formiga Branca”.
Um dos horríficos relatos que se ouviram no tribunal foi a história de uma tentativa de escapar por parte de Ongwen e outras três crianças. Quando foram descobertos, Ongwen foi obrigado a esfolar vivo um dos seus colegas, um aviso para o que lhe iria acontecer se voltasse a tentar fugir. “Eles esfolaram-no no vivo, removeram-lhe os intestinos e puseram-no nas árvores”, relatou o psiquiatra perito em crimes de guerra, Dickens Akena, citou a CNN. “Depois disso, [Ongwen] disse que não conseguiu comer carne durante dois ou três meses”.
Na grupo rebelde liderado por Joseph Kony, um autoproclamado profeta, que ainda hoje faz parte de lista dos 10 mais procurados no mundo pelo Tribunal Penal Internacional, os rapazes raptados eram transformados em soldados obedientes, cumprindo qualquer ordem, por mais sanguinária que fosse, e as raparigas em escravas sexuais, com motivos religiosos. Kony foi responsável direto pela ascensão de Ongwen, que ganhou ascendente em 2004, após comandar um massacre na aldeia de Lukodi, no Uganda. “Cidadãos foram baleados, incinerados e espancados até à morte”, disse o juiz Bertram Schmitt, citado pela AP. Muitos dos crimes pelos quais a “Formiga Branca” foi julgada aconteceram na mesma altura que este ataque, entre 2002 e 2005, segundo o Guardian, mas as ofensas expandem-se ao longo da década.
O jornal inglês cita um assalto de quatro dias a um campo no Congo, em dezembro de 2009, como um dos mais terríveis exemplos da barbárie provocada pela LRA. Neste ataque, 350 civis foram assassinados e 250 pessoas, incluindo, pelo menos, 80 crianças, foram raptadas.
Mas estes são apenas alguns dos exemplos, Ongwen, um dos cinco líderes seniores da LRA a ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional, e, a par de Kony, um dos sobreviventes, foi julgado por tantos crimes, que, enquanto se lia o veredicto, o júri permitiu que Ongwen continuasse sentado, ao contrário do habitual, em que o réu é obrigado a permanecer de pé,
Os monstros são reais? O julgamento de Ongwen levanta um debate ético que faria corar os argumentistas do filme Temos Que Falar Sobre Kevin, que questiona se a maldade do jovem Kevin (interpretado por Ezra Miller) nasceu com ele e é inata à sua pessoa ou se foi provocada por fatores exteriores, nomeadamente a influência dos pais. O advogado de defesa insistiu que Ongwen “era apenas uma criança quando foi raptado e transformado numa máquina de guerra contra o seu desejo”. “Ele é uma vítima assim como os outros antigos combatentes do LRA, que também foram raptados e participaram da guerra, como vítimas e isso não é contestável”, justificou. “Quando Ongwen foi raptado ele não teve hipótese, fizeram dele um escravo. Escravatura que continuou até ele abandonar o campo”, disseram os advogados.
Esta teoria é defendida há muitos anos, inclusive por Florence Ayot, raptada pelo LRA que, apesar de ter sido violada pelo “Formiga Branca” quando tinha apenas 13 anos, acabou por se tornar esposa do ugandês voluntariamente. Ayot chegou a afirmar que a condenação de Ongwen era uma “injustiça”. “O Dominic costumava contar-nos como foi raptado quando era muito novo. Tudo o que ele fazia era em nome do Kony, por isso, está inocente”, disse, em 2008, à BBC.
Ayot, aparentemente, foi apresentada ao lado mais humano de Ongwen, mas nem todas as suas “esposas” conheceram este lado – outras apenas conheceram o “Formiga Branca”. Uma das testemunhas do caso, cujo nome não foi mencionado, afirmou que foi raptada em 2005 e forçada a ter relações sexuais com Ongwen até escapar do acampamento, em 2010. “Ele disse-me que se continuasse a chorar – e mostrou-me a sua arma…”, disse em tribunal, citada pela BBC.
Os procuradores não vão na cantiga que a “Formiga Branca” seja um fruto das barbaridades e argumentaram em tribunal que este teve uma liderança ativa durante os ataques e, apesar de ter tido oportunidade para abandonar, não o fez.
“O LRA aterrorizou as pessoas do norte do Uganda e dos países vizinhos durante mais de duas décadas”, disse a diretora de justiça internacional associada da Human Rights Watch. “Um dos líderes do LRA foi finalmente culpabilizado pelos terríveis abusos que as vítimas sofreram”.
Quando o juiz Schmitt leu o veredicto – uma pena entre 30 anos e prisão perpétua – estava resoluto: “Não foram encontradas provas que apoiassem a alegação da defesa de que Dominic Ongwen sofreu de qualquer doença ou transtorno mental durante o período relevante para as acusações, ou que ele cometeu esses crimes sob coação”, disse. “A sua culpa foi estabilidade para além de qualquer dúvida razoável”.