“Toquei 29 anos com ela. (…) Foi a melhor vida que podia imaginar-se. Não houve nada mais bonito, mais perfeito, mais maravilhoso do que isto.” Ela era a embaixadora do país, Amália, mulher que teve o mundo, e embora o seu mito persista, o homem que a acompanhou na viola baixo, garantia que estamos longe de imaginar a importância que ela teve, o alcance arrebatador da sua voz. Joel Pina descobriu já nas suas memórias, revisitando os tantos países por onde tinham passado, os muitos concertos e as atenções que recebiam, a adoração para ela, mas que era tanta que transbordava para quem estivesse ao seu redor. E ele tinha a sua admiração também, o seu favor. “É na cara do Joel que eu vejo como está indo a minha atuação”, dizia Amália. Por sua vez, este homem que morreu na quinta-feira, a uma semana de fazer 101 anos, não apenas se sentia acarinhado, mas reconhecia a importância do seu papel, afirmando que acompanhar “é dar chão a quem está a cantar”.
Nasceu uns escassos meses antes de Amália, no Rosmaninhal, concelho beirão de Idanha-a-Nova, a 17 de fevereiro de 1920. Esteve com ela desde 1966 até à sua morte, três décadas que lhe deixaram um fio para desembaraçar depois, numa descoberta feita em ferida para recuperar do espanto, andando para trás, dando-se conta do privilégio que teve, e assim foi participando pelo interior, sabendo perceber a diferença, lembrando-se e guardando Amália, que, como todas as grandes lendas, “são tecidas de uma multidão de pequenos erros” (Pierre Reverdy). Joel Pina, ficará para todos conhecido como professor, pelo testemunho que deixou quanto à alegria de ser fadista, como disse Aldina Duarte. “Quem acerta com tanto gosto na vida, durante cem anos, até a morte põe no lugar”, disse a fadista numa breve mensagem de tributo nas redes sociais.
Deixa muitos herdeiros, o seu percurso de oito décadas confunde-se com a própria história do fado, tendo acompanhado interpretes de diferentes gerações, como Maria Teresa de Noronha, Teresa Tarouca, Tony de Matos, Max, Tristão da Silva e Cristina Branco, e, como vinca Ruy Vieira Nery, foi o seu contributo que impôs definitivamente a viola-baixo no acompanhamento do fado. Era o último membro vivo do Conjunto de Guitarras de Raul Nery, tendo integrado a formação em 1959, e mantendo uma amizade com o guitarrista até à sua morte, em junho de 2012. Ambos foram condecorados, no mesmo dia, com a Comenda da Ordem de Mérito pelo Preisdente da República. Nas suas diferentes fases, este conjunto incluiu também nomes como José Fontes Rocha, Joaquim do Vale e Júlio Gomes, tendo deixado de tocar em 1969.
Joel Pina foi também autor de melodias, nomeadamente Folha Caída, Madrugada e Tempo Perdido, e ao longo da carreira gravou mais de três centenas de discos. Amália fez-lhe a maior das homenagens, dizendo que o “baixo, só ele toca; os outros tocam baixinho”. Já a Enciclopédia da Música Portuguesa no Século XX, diz que o seu estilo se caracterizava "pela clareza da progressão do baixo executada com uma pulsação regular que permite ao fadista e ao guitarrista uma larga margem de liberdade expressiva (recorrendo muitas vezes ao tempo 'rubato' e à elaboração melódica), sem perder o controlo rítmico e o percurso harmónico de base".
Numa entrevista à Visão, falou de como começou no bandolim, que o pai lhe comprou numa viagem que fez, tendo chegado a casa e dito ao miúdo de oito 8 anos que Joel era: “Toma, arranja-te.” E foi assim do confronto com o instrumento que nasceu um entendimento especial com a música. “Fui arranhando aquilo e, ao fim de algum tempo, já começava a purpurar os sons e não largava o instrumento. Conhecia músicas de ouvido e, meses depois, já tocava umas coisinhas. (…) Um ano mais tarde, já sabia tocar bandolim e o meu pai mandou-me aprender solfejo. Havia lá, na minha terra, um indivíduo que sabia muito de música. E ensinou-me. No barbeiro, juntava-se muita gente, tocavam-se umas coisas e, um dia, esse meu mestre começou a dizer: “Ele já dá cartas aos mais velhos.” Ele dizia que eu tinha grande intuição musical e um ouvido que ia para além da música. Ainda jovem, vim para Lisboa. Fui tocar com o conjunto de guitarras do professor Martinho d’Assunção, onde aprendi muita música. Guitarra e viola, sobretudo…”
A viola-baixo foi uma escolha, uma intuição, pois se Joel já tocava guitarra e viola, percebeu que se aprendesse a viola baixo isso o distinguiria, pois era um instrumento que não fazia parte do acompanhamento tradicional da canção de Lisboa. Embora só tenha começado a acompanhar regularmente Amália mais tarde, foi em 1954, e por culpa de uns franceses que apareceram por aí a querer fazer um filme, que o encontro entre os dois se proporcionou. Numa entrevista que deu à Lusa, contava que a equipa francesa do filme Les Amants du Tage (Os Amantes do Tejo, 1955), de Henri Verneuil, quiseram que, em vez de dois guitarristas (guitarra portuguesa e viola), ela se fizesse acompanhar por quarto. E foram os franceses que, tendo passado pela Adega Machado, onde Joel tocava, depois de o ouvirem acharam que seria boa ideia ter o seu instrumento em vez de outra viola. “Fomos um mês para Paris para fazer o filme, as cenas de interiores foram todas lá”, contava à Visão. “Foi este o primeiro contacto profissional que tive com a Amália Rodrigues. Foi um filme que deu nas vistas. A ela, deu-lhe publicidade pelo mundo fora.”