Há anos a fio que a Câmara de Lisboa vem promovendo o Bairro Alto como local onde qualquer mamífero arrenda, por um fim de semana, apartamentos a preços de cachucha, sobretudo porque não é controlável o número de pessoas que se instalam nesses espaços pequenos. Para isso, tratou de permitir a venda a grosso e a retalho de velhos prédios e esteve-se nas tintas para o que os compradores faziam com eles. Alguns, tendo inquilinos muito antigos, optaram pela velhaca opção de deixar pura e simplesmente que se transformem em ruínas ao ponto de ninguém conseguir lá viver. Esta semana, o 17 da Rua do Norte foi selado por ameaça de ruína. Só tinha uma habitante, no último andar, a Dona Fernanda, a quem foi generosamente oferecida uma temporada num lar até o assunto estar resolvido, o que, pelas contas de uns proprietários que nunca lá puseram os pés, deverá acontecer pelos confins da próxima década.
No 17 da Rua do Norte fica o restaurante Calcutá, a minha Índia em Lisboa. Há 20 anos que tem sido o centro da tertúlia de amigos de todas as proveniências, a casa de escritores e de músicos, de jornalistas e de gente do teatro, uma mistura saudável de partilha de ideias e de discussões filosóficas intermináveis como os discursos de Platão. Para mim é uma casa, um escritório, um lar que reparto alegremente com os amigos – ou tristemente, quando os momentos são tristes –, por vezes até o sol ir já alto no céu, como naquela conversa entusiástica com o Carlos Mendes e com o Rui Veloso em que o nascer do dia nos apanhou de surpresa ao sabor das palavras. O Hirene Tambaclal, o dono, com a sua paciência indiana, limita-se a dizer: “Não se esqueçam de trancar a porta”. A porta do Calcutá está trancada desde ontem. Por maldade e por incúria. Mas o Calcutá não fechará nunca. Não se fecham os sonhos. O nosso companheiro não ficará para trás! Porque, como dizia Gomes Ferreira, “Nenhum de nós anda sozinho/ E até mortos vão a nosso lado”.