N.º 44 da Rua do Alecrim


Há nele uma necessidade tão imperativa da busca incessante de livros antigos, de documentos únicos, de peças de arte que, às vezes, preciso de o ouvir descrevê-las para perceber que estou, verdadeiramente, perante uma peça de arte.


O meu amigo Bernardo Trindade É uma daquelas personagens que ficaria bem em qualquer livro, talvez num de Otto Lara de Resende, O Príncipe e o Sabiá e Outros Perfis, por exemplo, no qual desenha retratos humanos desmedidos. Ou talvez nas crónicas de Nelson Rodrigues, A Vida Como Ela É. Há nele, profundamente entranhada, a alma do pai, Tarciso, homem que abriu a Livraria Campos Trindade, na Rua do Alecrim, n.o 44. Há nele uma necessidade tão imperativa da busca incessante de livros antigos, de documentos únicos, de peças de arte que, às vezes, preciso de o ouvir descrevê-las para perceber que estou, verdadeiramente, perante uma peça de arte. Podia ter também lugar nas páginas de Bruce Chatwin, esse homem que sofria da doença de estar em casa e se tornou um viajante compulsivo, com emprego na leiloeira Sotheby’s, de Londres. Hoje, o Bernardo Trindade, assim por extenso, porque ele é um homem por extenso, fecha a porta da sua loja mágica pela qual esvoaçam, como traças douradas, milhões e milhões de letras e brilham com a intensidade de Sirius, a estrela da suprema magnitude, as capas e lombadas de obras imperdíveis. Sei, sabemos todos, seus amigos, que terá dentro dele, a partir de agora, uma dor fininha que vai ter de suportar para sempre. No 44 da Rua do Alecrim cresceu, aprendeu e ganhou o seu lugar de melhor alfarrabista de Lisboa. Quando, pela última vez, fechar a porta e sair para o passeio, deixando para trás o lugar mais importante da sua existência, a cidade ficará mais pobre, mais triste. Na luta pela vida que sempre quis lutar, o Bernardo Trindade foi um vencedor. Não é o último rodar da chave que o derrota. “Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer”, dizia Pessoa numa carta a Mário de Sá-Carneiro. Bernardo, meu irmão mais novo, caminharemos juntos novamente. Não há desembarque onde se esqueça, mas nós não queremos esquecer. “Tragam flores para a despedida!”, dizes. Eu levo comigo a flor da amizade para que possas despetalá-la como quem desembrulha um abraço vindo do fundo do coração.

N.º 44 da Rua do Alecrim


Há nele uma necessidade tão imperativa da busca incessante de livros antigos, de documentos únicos, de peças de arte que, às vezes, preciso de o ouvir descrevê-las para perceber que estou, verdadeiramente, perante uma peça de arte.


O meu amigo Bernardo Trindade É uma daquelas personagens que ficaria bem em qualquer livro, talvez num de Otto Lara de Resende, O Príncipe e o Sabiá e Outros Perfis, por exemplo, no qual desenha retratos humanos desmedidos. Ou talvez nas crónicas de Nelson Rodrigues, A Vida Como Ela É. Há nele, profundamente entranhada, a alma do pai, Tarciso, homem que abriu a Livraria Campos Trindade, na Rua do Alecrim, n.o 44. Há nele uma necessidade tão imperativa da busca incessante de livros antigos, de documentos únicos, de peças de arte que, às vezes, preciso de o ouvir descrevê-las para perceber que estou, verdadeiramente, perante uma peça de arte. Podia ter também lugar nas páginas de Bruce Chatwin, esse homem que sofria da doença de estar em casa e se tornou um viajante compulsivo, com emprego na leiloeira Sotheby’s, de Londres. Hoje, o Bernardo Trindade, assim por extenso, porque ele é um homem por extenso, fecha a porta da sua loja mágica pela qual esvoaçam, como traças douradas, milhões e milhões de letras e brilham com a intensidade de Sirius, a estrela da suprema magnitude, as capas e lombadas de obras imperdíveis. Sei, sabemos todos, seus amigos, que terá dentro dele, a partir de agora, uma dor fininha que vai ter de suportar para sempre. No 44 da Rua do Alecrim cresceu, aprendeu e ganhou o seu lugar de melhor alfarrabista de Lisboa. Quando, pela última vez, fechar a porta e sair para o passeio, deixando para trás o lugar mais importante da sua existência, a cidade ficará mais pobre, mais triste. Na luta pela vida que sempre quis lutar, o Bernardo Trindade foi um vencedor. Não é o último rodar da chave que o derrota. “Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer”, dizia Pessoa numa carta a Mário de Sá-Carneiro. Bernardo, meu irmão mais novo, caminharemos juntos novamente. Não há desembarque onde se esqueça, mas nós não queremos esquecer. “Tragam flores para a despedida!”, dizes. Eu levo comigo a flor da amizade para que possas despetalá-la como quem desembrulha um abraço vindo do fundo do coração.