Parecia que a terra tragara Maria Chindamo, uma mãe e proprietária rural de 44 anos, desaparecida em 2016, em Vibo Valentia, na Calábria, bastião do clã Mancuso. O seu carro foi encontrado de madrugada, ainda a trabalhar, à porta da sua quinta, com o rádio a tocar, os seus pertences intactos e sangue na carroçaria.
A história escrevia-se a si mesma. Um ano antes, Maria divorciara-se de Ferdinando Punturiero, membro de uma conhecida família da ‘Ndrangheta, a tentacular máfia calabresa. Ferdinando, recusando aceitar a separação, suicidou-se, e os Punturiero culparam-na. Maria passou a fazer parte da enorme lista de pessoas oficialmente desaparecidas em Itália, mas que as suas famílias sabem terem sido mortas às mãos da máfia.
Agora, essa certeza aumentou. “A mulher foi desfeita com um trator e dada de comer aos porcos”, revelou a semana passada Antonio Cossidente, um pentito, ou arrependido da máfia, citado pelo Corriere della Calabria. Com um twist na história: um vizinho de Maria – traficante de droga e associado ao clã Mancuso, rival dos Punturiero – estava furioso por ela recusar vender as suas terras e animais. Decidiu juntar o útil ao agradável matando Maria, “sabendo perfeitamente que, se algo lhe acontecesse, a responsabilidade cairia na família do marido dela”, explicou Cossidente, uma das mais de 900 testemunhas no massivo julgamento da máfia que começou esta quarta-feira, contra o clã Mancuso.
São esperadas inúmeras histórias tão dramáticas quanto as de Maria, com centenas de alegados mafiosos calabreses no banco dos réus, junto com empresários e funcionários públicos seus associados – incluindo Giancarlo Pittelli, antigo senador do Forza Italia, o partido de Silvio Berlusconi. No total são 355 arguidos que se acotovelarão num antigo call center, fortificado e cheio de jaulas de grades brancas, transformado em tribunal improvisado, em Lamezia Terme, bem no coração do território ancestral da ‘Ndrangheta, para um julgamento que deverá durar pelo menos uns dois anos.
Trata-se do maior processo contra o crime organizado italiano há décadas, quando os chamados “Maxiprocessos” vibraram um golpe brutal nas famílias da máfia siciliana, ou Cosa Nostra. Nos últimos anos, com os sicilianos em retirada, a ‘Ndrangheta foi ganhando cada vez mais projeção, cultivando contactos e tornando-se um dos maiores – senão o maior – jogadores no tráfico de droga internacional. Não só desfrutam do controlo do porto de Gioia Tauro, um dos mais movimentados da Europa, porta de entrada para toda a espécie de bens ilegais, como têm uma estrutura muito diferente da Cosa Nostra, com clãs independentes, ou ‘ndrinas, que controlam cidades ou bairros e são muito mais difíceis de decapitar
Se tivéssemos o raro privilégio de assistir a um crimine, a reunião anual das famílias da máfia calabresa, durante as procissões de Nossa Senhora de Polsi, em setembro, na aldeia de San Lucas, não veríamos os Mancuso serem tratados como reis. “Os Mancuso são muito importantes, mas a ‘Ndrangheta é composta por muitos, muitos grupos. Só na Calábria há quase 90”, salienta ao i Federico Varese, professor de Criminologia na Universidade de Oxford e autor do livro Mafia Life. Os Mancuso “são um desses grupos, mas um grupo muito poderoso, sem dúvida. A questão é que na ‘Ndrangheta não há um chefe dos chefes, há muitos chefes”.
A chave do sucesso dos Mancuso é a mesma que a da ‘Ndrangheta. A família controla diretamente boa parte do porto de Gioia Tauro, o que a torna crucial para o resto da organização. O risco é que, mesmo sob pressão das autoridades, outra família da máfia consiga recuperar o controlo de Gioia Tauro. “Não é fácil controlá-lo, não dá para verificar todos os contentores”, explica Varese. “E, claro, há muitas pessoas ligadas ao crime que ainda lá trabalham”.
Mesmo assim, o julgamento já desferiu um golpe inédito nos Mancuso. Num caso sem precedentes na história da máfia italiana, o próprio herdeiro do clã, Emanuele, filho do temível Luni Mancuso, conhecido como “o engenheiro”, virou-se contra a própria família, tornando-se um pentito. Agora, Emanuele, que está atrás das grades, pede proteção para a sua própria filha, de dois anos.
“Decidi colaborar com a justiça quando ela nasceu, com esperança de lhe oferecer um futuro diferente”, escreveu o pentito, numa carta citada pelo La Repubblica. Contudo, não seria isso que aconteceria – a menina ficou sob custódia da mãe, Chimirri Nensy Vera, que, numa reviravolta do destino, recusou aceitar a traição do marido à ‘Ndrangheta, continuando a viver debaixo do teto dos sogros, acusou Emanuele.