Friedenreich. O instinto assassino do homem chamado Tigre

Friedenreich. O instinto assassino do homem chamado Tigre


Não há contabilidade nem estatística que vá para além dos golos de Arthur: 1329. Para lá de Pelé. E com Ronaldo ainda muito, muito longe!


Anda meio mundo a discutir os golos de Ronaldo e de Pelé, com Messi à mistura, sejam eles em jogos oficiais ou amigáveis (curioso, para mim, golo é sempre golo e ponto final), e ninguém fala daquele que até os brasileiros consideram o maior goleador da história, acima de Pelé e tudo: Arthur Friedenreich.

É bem verdade que Fried, como lhe chamavam, teve a carreira balizada – o termo vem a propósito – entre a sua estreia em 1909, no Germânia, de São Paulo, clube que viria a mudar o nome durante a ii Guerra Mundial, passando a Esporte Clube Pinheiros, e a sua despedida no Flamengo, em 1935, com muitos dos estudiosos do fenómeno a porem em causa as contas uns dos outros.

Friedenreich foi uma figura única no futebol mundial. Filho de um alemão, Oscar Friedenreich, desenhista técnico no departamento de obras em São Paulo, e de Mathilde de Moraes e Silva, uma professora de escola primeira de pele bem escura, ao contrário do marido, teve de enfrentar o preconceito racista que o vitimou mal começou a jogar futebol. Para disfarçar a origem crioula esticava o cabelo com brilhantina, fazendo desaparecer a carapinha, e pintava a cara de pó-de-arroz antes de entrar em campo.

Oscar era um pai extremoso. E babado. Percebeu, como toda a gente, que o filho era um daqueles craques de corpo inteiro. Uma crónica dos seus primeiros tempos como jogador dizia dele: “Distribui com calma, com precisão, os seus cabeceios são certeiros e os tiros finais fortíssimos. Não é jogador egoísta, não abusa dos dribles, do jogo pessoal. Mesmo à porta do gol, vendo um companheiro mais bem colocado, não titubeia em passar a bola. É, afinal, jogador que não faz jogo para as arquibancadas, e sim para o conjunto. Os dribles eram econômicos apenas para abrir espaço para a finalização. A finta de Friedenreich desenvolvia-se numa série de velozes, hábeis, pequenos desvios do couro a cargo sobretudo da face externa das botas, dando-lhe grande penetração, o que lhe proporcionava em poucos segundos o ganho de espaço para conseguir a posição do arremate”.

Golos e mais golos! Fried começou por jogar em clubes modestos como o Germânia, o Ypiranga, o McKenzie, o Clube Brasil ou o Atlas Flamengo. E a marcar golos às pazadas. Sempre atento ao seu menino, Oscar Friedenreich fazia-se acompanhar por um caderninho onde ia anotando todos os golos do filho e descrevia os mais espetaculares. Tinha um parceiro a ajudá-lo:Mário de Andrada, outro avançado de categoria que foi companheiro de equipa de Arthur no Paulistano.

Nascido no dia 18 de julho de 1892, Fried veio ao mundo com os pés e a cabeça abençoados – era também um exímio cabeceador. O seu estilo combativo valeu-lhe a alcunha de El Tigre. Mário de Andrada não conseguiu acompanhar a carreira completa de Arthur, até porque este jogou até aos 43 anos, antes de passar a ser inspetor de vendas da marca Antártica Paulista. Foi o filho de Andrada que ficou com a responsabilidade de anotar os golos de Friedenreich e, quando tornou pública a contabilidade, apresentou-a tanto à FIFA como ao Livro de Recordes do Guinness: 1329 golos.

De Zurique veio a notícia de que não cabia ao organismo entrar num campeonato de golos marcados e só lhes interessava os golos internacionais apontados por Fried com a camisola da seleção brasileira. Já o Guinness aceitou os números como bons e publicou-os assim mesmo.

Ora, se não pusermos em causa esta estatística, Pelé ficou um bocado atrás de Arthur Friedenreich, com apenas 1281 golos. Claro que há quem reclame da veracidade das contas do pai Oscar e dos Andradas. Mas também há que aceitar que são números ainda bem longe dos de Cristiano Ronaldo, que soma 758, e de Messi, com 715. Resta saber se algum destes dois últimos está preparado para jogar até aos 43 anos como Arthur, Arthur Friedenreich, El Tigre.