Há quem escreva livros, ficção ou não ficção, romance, como se chamava antigamente, ou ensaio; há quem goste de escrever livros, quem demonstre, às vezes, um gosto demasiado pronunciado por esse estatuto que já teve alguma aura. Há quem se preocupe com os mais variados assuntos, quem pretenda representar as mais diversas situações – há quem queira, também, mergulhar nos mais sombrios recessos da alma, mas sempre literariamente. Há quem, inclusive, demonstre alguma vocação para isso, quem consiga produzir romances, ficções, ora competentes ora bons, raramente maus – a produção romanesca, em Portugal, faz lembrar o que Kafka dizia relativamente ao alemão checo, que o “nível médio da linguagem não é senão cinza, uma cinza que não é capaz de tomar um aspecto de vida”. Depois, há outro tipo de textos, escritos no extremo, astros frios que cruzam os céus, que não têm ascendentes nem descendentes, que surgem de quantos em quantos anos, que são de tal forma impossíveis que só podem ser uma acusação a qualquer tempo.
Vinte anos depois de ter sido publicado pela Fenda, Vasco Santos decide voltar a publicar, agora pela VS Editor, “Fernanda” de Ernesto Sampaio. A história, que não é história nenhuma, é fácil de contar e resume-se em poucas linhas: a 6 de janeiro de 2000, poucos dias antes de estrear uma peça, a actriz Fernanda Alves é encontrada morta no hotel em que se encontrava no Porto. Ernesto Sampaio, figura ligada ao surrealismo português e marido dela, não lhe sobrevive muito tempo, morrendo em dezembro de 2001. “Fernanda”, que não é um livro sobre o luto nem é em si mesmo um trabalho de luto, que não tenta lidar com a ausência, com a perda, mas que se mede com o vazio, com o rasgão, que percorre o inferno mostrando todos os seus desfiladeiros, todas as suas paisagens últimas, é o texto escrito por Ernesto, a acusação ao tempo, à morte, a sonda, que é ele próprio, que envia à mais extrema dor. “É a única pessoa que conheço que morreu de amor”, disse Cesariny, sendo necessário ouvir nestas palavras todo o peso que “Fernanda” lhe pode conferir.
É bastante difícil escrever o que quer que seja sobre um livro como “Fernanda”, perturbá-lo na sua aflição, na sua angústia, como se não fosse lícito vir remexer nessa dor tão pessoal, íntima até ao desconhecimento. Manuel de Freitas, quando sobre ele escreve, recusa-se a citá-lo, dando notícia desse pudor que obrigatoriamente invade, desse interdito que nos obriga a parar nas imediações deste texto – esse interdito que impede, também, qualquer discurso centrado em nós. E tinha talvez razão: só citando por inteiro, não o maculando com qualquer exterior, mostrando esta escrita que atinge uma tonalidade de tal forma dolorosa, um som que não parece ter lugar em lado algum, é que se consegue fazer justiça ao inferno que foi, para Ernesto Sampaio, perder Fernanda. Farei o mesmo, parando frente ao texto, não perturbando aquela forma de ensimesmamento que não é interioridade alguma, mas uma exposição absoluta, um despojamento sem descanso.
E é mesmo inferno, e inferno em todos os momentos, em todos os lugares, aquilo que aqui vemos, esta angústia de tal forma lancinante que deixa sem saída, sem fôlego possível, sem futuro qualquer, em que os dias são vazio sobre vazio com uma ferida que não fecha, estéril ao ponto de nem a angústia apresentar uma qualquer forma consolação. Aflição talvez seja uma palavra justa, se houver aqui lugar a palavras justas, se for possível fazer justiça a este texto impossível, que é escrito a partir desse rasgão que a morte impõe àquele que sobrevive, do tormento sem fim da perda.
Duas décadas depois de ter saído, vários anos depois de ter sido lido, “Fernanda” conserva a agonia delicada que nela podemos ler, como se a passagem do tempo não tivesse qualquer forma de ganho sobre um texto destes. Alguém suficiente maldoso poderia dizer que se trata aqui de intemporalidade, de eternidade, ou de uma dessas palavras que tanto se usa para descrever tudo e mais alguma coisa. Mas isso seria fazer com que “Fernanda” jogasse um jogo que não é o dela, aquele da literatura. Diria antes que há qualquer coisa neste texto de intempestivo, uma acusação ao tempo, a qualquer tempo, um grito, um recuo da linguagem para uma atmosfera rarefeita, tecida de vazio e de perda. Sem lugar algum para qualquer entendimento que seja da palavra representação, “Fernanda” recusa qualquer tempo, é a recusa, sob a forma de dor extrema, de qualquer tempo e de qualquer lugar. E, com isto, recusa igualmente qualquer forma de identificação – que seria sempre deslocada, para dizê-lo de forma clemente. Não há nada aqui de universal, que é sempre vazio: há uma paisagem desolada, a agonia, a angústia, o inimaginável e é tudo – e é o nada escrito, de alguém que desceu ao inferno e escreveu a partir de lá.
Giorgio Agamben falava de um “ductus da mão” que “passa continuamente da forma comum das letras aos traços particulares que identificam a sua presença singular” para dar conta de uma “incessante emergência (que) constitui a sua expressividade”, isto é, da singularidade, que assim se constitui a partir desta forma particular de caligrafia onde comum e particular se cruzam. É isto que tantas vezes encontramos em tantos livros: a língua é dobrada, flectida, e dá uma forma de escrita, uma tonalidade própria, singular. Reconhecemos, aprendemos a reconhecer, aquele escritor particular por aquele estilo de escrita, por aquela tonalidade que confere à língua um ligeiro perfume que emana dela (há um limite aqui, que é o daquele escritor sem estilo, mas isso é outro problema). “Fernanda” não faz nada disto, no entanto, e nisto consiste a sua grandeza de astro gélido: é como uma língua idiomática, impossível, cujo sentido se percebe – é legível – mas onde não se consegue, nem se deve, talvez, entrar. É singularidade, é idiomatização – para usar um termo estranho – levada ao limite; mas não é estilo: é dor e desolação, a um ponto em que a língua arde, é um lugar anterior a qualquer linguagem, mas que é cravado nas palavras, é um som incompreensível, é Ernesto Sampaio quando este é apenas um rasgão, uma ferida, a agonia de quem perdeu alguém.
É literatura, mas no preciso momento em que esta desaparece – talvez, seguindo Blanchot, não haja outra. Podemos, sem dúvida, inserir “Fernanda” numa tradição qualquer, encontrar-lhe parentes mais ou menos próximos, inseri-lo num discurso sóbrio. Mas, depois de tudo, como não perceber que “Fernanda” sacode de cima de si isto que mais não é que esta história que recusa, com a qual não quer ter nada que ver – carrega apenas a sua angústia e intolerável é não lhe conceder a sua singularidade. É um texto órfão, sem parentes, como esta dor é órfã, como esta angústia não tem medida comum que permita ser comparada ao que quer que seja – como qualquer agonia é sempre incomparável.
Situa-se antes das palavras, antes de qualquer linguagem. Mas não pretende dar notícia deste espaço anterior, não o pretende representar, não faz uso de formas comuns de maneira a que se consiga perceber – é este o esforço de tantos e tão bons livros, é este o esforço da literatura. Aqui, no entanto, é outra coisa, que é tão impossível como morrer de amor em 2001: trata-se de escrever a partir de um lugar onde qualquer linguagem, qualquer língua, se tornou impossível ou interdita, onde não consegue entrar, onde nada nasce. É a queda da língua, de qualquer língua: é aí que Ernesto Sampaio erige o seu monumento.
Mas é também um livro de amor – de um amor extremo, que só se pode ir de um mortal ao mortal. O sofrimento está encerrado para sempre, como diria um filósofo alemão em resposta a outro, não tem redenção nem ninguém o consegue desfazer – mas continua, como acusação, fazendo ouvir tantas vezes o seu lamento sem fim. A alegria também se encontra encerrada, mas talvez de uma outra forma. E, no fim, talvez possa citar uma passagem de “Fernanda”, uma declinação dessa formulação que nos diz “o amor, mais forte que a morte”. Traz consigo o luto, a tristeza, mas também a afirmação do amor que “é o único grito de angústia capaz de se metamorfosear em canto de alegria”. A última palavra, portanto, é de Ernesto Sampaio:
“A única mulher com quem teria podido envelhecer era a Fernanda; a idade não seria capaz de empobrecer a nossa riqueza comum. Compreendo agora o que uma tal fonte tinha de inesgotável, de constante, com uma abundância que nunca enfraquecia. Assim é o amor sobre o qual o tempo não tem poder, porque tudo o que podia diminuí-lo não faz mais do que o avivar: as suas raízes estendem-se até não deixar nada que não abracem. Só ele permanece, sem o corpo de onde nasceu; tudo o que vai passando e não tem que ver com ele fica irremediavelmente ferido de irrealidade”.