Joe Feagin. “Todos os norte-americanos são racistas ou racistas em recuperação”

Joe Feagin. “Todos os norte-americanos são racistas ou racistas em recuperação”


Na ótica do catedrático de 82 anos, os “problemas profundos com o racismo” dos EUA começaram há mais de 400 anos.


Nasceu em maio de 1938, após a Grande Depressão que atingiu os EUA. Em San Angelo, uma pequena cidade nas planícies do Texas, para onde os pais se mudaram quando o pai conseguiu um emprego como engenheiro elétrico. Foi criado em Houston, cidade onde cresceu, num mundo segregado do sul profundo. Estudou História e Filosofia na Universidade Baylor, formando-se em 1960. Em 1966, doutorou-se em Sociologia pela Universidade Harvard. Em 1973, com Ghetto Revolts, foi nomeado para o Prémio Pulitzer. Aos 82 anos, Joe Richard Feagin é um dos sociólogos e teóricos sociais norte-americanos mais aclamados, tendo realizado uma investigação extensiva sobre questões raciais e de género e tendo desenvolvido igualmente a teoria do racismo sistémico. Já foi Presidente da American Sociological Association e, atualmente, leciona unidades curriculares como Racismo e Anti-Racismo ou Teorias das Relações Raciais e Étnicas na Texas A&M University.

Em “Racist America: Roots, Current Realities, and Future Reparations”, demonstrou que os EUA foram fundados com base no racismo. Essencialmente, desde a criação da Constituição de 1787, em que os negros foram classificados como propriedade da população branca.
Como é do conhecimento geral, a Europa começou a desenvolver o racismo com a escravatura. Por exemplo, países como Portugal e Espanha fizeram-no. A maioria dos trabalhadores escravizados foram trazidos, pelos ingleses, e essa constituiu a base das trocas comerciais baseadas no tráfico de seres humanos. Os EUA têm agora aproximadamente 413 anos de idade. A primeira colónia que persistiu nos EUA foi em Jamestown, na Virgínia, que nasceu em 1607. Doze anos depois desses colonos terem descoberto Jamestown, trouxeram 20 escravos num navio pirata com bandeira holandesa. Esses primeiros trabalhadores foram trabalhar para colonos brancos no ano de 1619. E a escravatura não terminou até 1865, ou seja, cerca de 65% da História dos EUA, prende-se com o sistema de escravatura sistémico e fundacional. Somos o único país industrializado que tem a escravatura como base. E esses escravos criaram uma quantidade impressionante de riqueza para os colonos brancos e seus descendentes. A escravatura não terminou até ao fim da Guerra Civil. Houve um curto período, digamos, de reconstrução, em que os escravos foram libertados – pelo menos, durante 10 a 12 anos, na teoria – e os EUA poderiam ter-se tornado uma sociedade antiesclavagista. Mas os proprietários de escravos, no fim do século XIX, voltaram ao poder e criaram as leis Jim Crow aos níveis estatal e local que reforçaram a segregação racial no sul dos EUA que durou uns 90 anos. Cerca de 22% da nossa História foi aquilo a que se pode chamar uma semi-estrutura de segregação. E estas leis só terminaram por volta de 1969. Portanto, até aí, este país teve duas das piores formas de exploração e opressão humanas da História humana: escravizou milhões, milhões e mais milhões de africanos e, gradualmente, outros americanos de cor, como mexicanos e chineses. Outras pessoas de cor começaram a ser oprimidas muito tempo depois. Este é o grande cenário. 

Costuma dizer que o racismo sistémico existe por causa de atitudes críticas tomadas por importantes decisores euro-americanos em pontos-chave da história norte-americana. Tal deve-se ao facto de a elite europeia ter moldado as principais instituições sociais, económicas e políticas para apoiar e manter a opressão contra os americanos de cor?
Se traçarmos uma linha temporal, percebemos que 340 ou 350 anos da História dos EUA foram de opressão extrema em termos raciais. E essa opressão não foi revertida, apenas começou a haver tentativas nesse sentido com o Movimento dos Direitos Civis, nos anos 60. E, a partir de 1969, quando a segregação legal foi abolida, tivemos a segregação a incidir extensivamente, de modo informal, nos afro-americanos, nos latinos e nos asiáticos. E quando digo que isto é fundacional, é porque começou nos primórdios deste país. Quando a Constituição foi criada, em 1787 – e oficialmente, EUA tornou-se o nome deste país –, esse documento, que ainda é seguido hoje em dia, foi feito principalmente por proprietários de escravos, os seus amigos advogados e comerciantes. O homem que esteve por detrás da Constituição, o grande cérebro, James Madison, era um dos grandes proprietários na Virgínia. Por outro lado, George Washington, também o era. Os homens, os 55 brancos que fizeram a Constituição, eram proprietários de grandes plantações, simpatizantes da escravatura ou comerciantes que construíam navios de escravos em Rhode Island. Essa Constituição foi retificada no fim da Guerra Civil mas,  mesmo assim, a escravatura foi reproduzida com as leis Jim Crow, em suma, escravatura sem qualquer mudança.  

Foram os europeus, que controlaram o desenvolvimento inicial dos EUA, no início do século XVII, que levaram ao crescimento da opressão dos africanos e afro-americanos?
A única comparação possível com os EUA é o panorama do Brasil, no qual Portugal desempenhou um papel crucial. Mas não é avançado nem industrializado, em oposição aos EUA, tenta sê-lo. A Grã-Bretanha, a Holanda, Portugal, Espanha… todos desempenharam um papel fundamental na troca de escravos, mas nenhum criou uma economia baseada em milhões de seres humanos que trabalhavam arduamente nos campos. Por isso é que temos estes problemas profundos com o racismo. Outra forma de olhar para esta linha temporal é o facto de existirem aproximadamente 20 gerações de descendentes de escravos. Até 1969, os afro-americanos foram escravizados, não podiam criar riqueza para as suas famílias mas sim para os brancos: nunca passaram nada aos filhos, netos e bisnetos. Os brancos podiam ser imigrantes pobres da Europa, mas não eram escravizados, podiam trabalhar e transmitir riqueza e recursos. E por isso é que temos problemas de racismo sistémico, porque nunca lidámos com esse roubo a larga escala dos afro-americanos e de outras pessoas de cor. 

“De uma perspetiva do racismo sistémico, os EUA são uma sociedade racista organizada com organizações e redes complexas e conectadas que, de modo rotineiro, têm o racismo enraizado”, escreveu. Atualmente, os elementos e as instituições de opressão racial mantêm-se?
Não nos podemos esquecer de outro fator essencial: quando os colonos europeus vieram para os EUA, usaram violência para suprimir e matar a população indígena. Tínhamos entre 10 e 20 milhões de indígenas e foram mortos pelos colonos, morreram de doenças europeias. Entre 1607 e 1900, essa população de nativos desceu até mais ou menos 237 mil. Por causa da violência, assassinatos, genocídios e doenças. O mesmo aconteceu na América do Sul mas, no caso da América do Norte, esses colonos vinham da Grã-Bretanha, alguns de França, outros da Holanda e da Irlanda, europeus do norte, alguns alemães. Respondendo, então, agora, à questão: se tentarmos perceber o racismo contemporâneo nos EUA, temos de desenhar uma grande caixa à volta do conceito, olhar para o grande cenário. A violência policial em Detroit, por exemplo, integra este grande cenário. 

Algum tempo depois de o escritor inglês Henry Fairlie ter emigrado para os EUA, na década de 1960, visitou a plantação de Thomas Jefferson em Monticello, na Virgínia, e fez uma tour. Fairlie perguntou ao guia onde  mantinha os escravos. O escritor relatou que outros turistas brancos olharam para ele em silêncio perturbados, enquanto o guia “engoliu em seco” e disse com firmeza que a casa dos escravos – habitualmente denominada por senzala no Brasil – “não estava incluída no roteiro oficial”. A segregação racial e o racismo sistémico ainda não estão incluídos na “tour oficial” dos EUA?
Poderíamos estar a falar sobre isso durante horas, mas a verdade é que muitas das velhas plantações em que os escravos trabalhavam transformaram-se em parques e monumentos. Os casais jovens – maioritariamente brancos – chegam a casar lá. E, na maioria destes locais, a brutalidade da realidade não é transmitida aos visitantes. Agora, em Monticello, os guias tentam afastar-se da divulgação de um panorama feliz, falso, da vida dos escravos, mas antes era esse o caminho que seguiam. Portanto, esse é um dos sítios, tal como Mount Vernon, onde se pode ter uma perceção honesta daquilo que aconteceu. É como se estivéssemos a falar de Auschwitz. Será que alguém gostaria de casar lá? 
Isso acontece porquê?

Tem tudo que ver com aquilo a que chamo moldura racial branca. É um mito, quase como no Gone With The Wind. Em que a Scarlett O’Hara, nas vésperas da Guerra Civil, em 1861, parece viver feliz com a família na sua plantação de algodão na Georgia mais os muitos escravos que exploram, certo?
Exatamente, porque esta moldura de que falei equivale ao facto de que quase nada é verídico naquele filme. Existe uma utopia criada em redor das plantações que ainda está presente na forma como são apresentadas. Porque, quando conhecemos a História, sabemos que são exatamente como Auschwitz e não como o filme. Os escravos trabalhavam até morrer, passavam fome, eram espancados. Há uma camada de açúcar a cobrir esta parte dos acontecimentos.  

Considera que, ao longo da História da América do Norte, o propósito da polícia era proteger a propriedade branca, já que os negros eram definidos como propriedade legal dos homens brancos ricos?
O sistema policial começou com patrulhas para defender a propriedade dos brancos. Essas patrulhas eram compostas por trabalhadores recrutados pelos grandes proprietários para perseguir escravos fugitivos. Porque os negros eram oficialmente propriedade dos brancos. E a constituição dos EUA, aqueles 55 brancos que a fizeram, definiram que os escravos fugitivos que atravessassem os limites dos estados em que trabalhavam tinham de ser devolvidos aos seus donos. A população escravizada não era apenas vendida e comprada, mas também usada como moeda de troca. Alguns dos bancos mais proeminentes do sul, como o Segundo Banco dos Estados Unidos, emitiram empréstimos diretamente usando escravos como garantia. Isso colocava as instituições bancárias do sul no centro da compra e venda da propriedade escrava. Portanto, este país foi absolutamente fundado por meio da morte dos indígenas e da escravatura dos negros que trabalharam as terras e criaram 20 gerações de mobilidade económica e sucesso para os brancos. 

Portanto, o racismo sistémico contribuiu para aumentar o empobrecimento de grupos como o dos afro-americanos?
Sim, e é por isso que, agora, a riqueza das famílias brancas que emigraram é 20 vezes maior do que a das famílias negras que estão nos EUA há mesma quantidade de anos. Existe um grande fosso que é explicado por aquilo que disse anteriormente: há que realçar a existência de 20 gerações de famílias brancas que enriqueceram injustamente e 20 gerações de famílias de cor que empobreceram injustamente. As duas últimas gerações de pessoas de cor têm tido mais oportunidades e direitos. Há mais democracia e equidade. Mas 18 gerações sofreram e não conseguem “apanhar” o ritmo das famílias brancas, é como se fosse uma corrida em que os primeiros começaram com vantagem. Não importa o quão bom alguém é ou o quanto trabalha, porque não consegue alcançar os mesmos benefícios. 

Voltamos à moldura racial branca? Escreve que é “um conjunto organizado de ideias, estereótipos, emoções e inclinações racializadas que levam à discriminação”. Como é isso leva a ações discriminatórias e recorrentes?
Essa moldura é uma forma de ver o mundo. É mais do que o preconceito e os estereótipos: inclui a narrativa racista que as pessoas seguem, porque o propósito de desenvolver essa moldura, que começou em 1607, é os brancos explicarem a si mesmos a forma como podem explorar, oprimir e matar pessoas. Temos de manter em mente que os brancos veem-se como religiosos e bons cristãos. E, se és um bom cristão, um proprietário de escravos, como é que explicas a alguém que espancas as costas massacradas dos trabalhadores africanos, até sangrarem, para trabalharem mais sem receberem nada?

Porque pensam que são superiores.
Claro. Nessa moldura, há dois pontos-chave: um é pensar que os negros são inferiores, preguiçosos, animais, estúpidos e compará-los com macacos até. Mas, o centro desta moldura, é a forma como os brancos se veem a si mesmos: como se fossem os mais inteligentes, com a melhor História, os mais trabalhadores… Todos esses fundadores dos EUA operavam através dessa ideia da raça superior. E ainda temos pessoas a pensar assim. A democracia branca, a inteligência branca, a beleza das mulheres brancas… parece que ser branco equivale a ser superior em tudo. Por exemplo, ouve-se que os negros são burros e trabalham menos, mas obviamente que tudo isto é um mito porque os negros trabalharam tanto que criaram uma riqueza tremenda. No fundo, os brancos querem racionalizar o seu racismo e legitimar um sistema de opressão que é imoral, nada ético e ultrajante porque se encaram como bons e cristãos. Por isso, podes ser como o George Washington, ir à igreja episcopal, ir para casa e espancar os escravos. Ou ter alguém que os espanque por ti. 

Em “Racist America”, escreveu que “a discriminação racial vai do policiamento a aspetos do sistema de justiça criminal”, nomeadamente, o facto de, em determinadas áreas, existirem poucos juízes negros, enquanto os juízes brancos parecem compreender pouco as adversidades das vidas dos afro-americanos.
Há muitos afro-americanos que são muito pobres, muitos deles viveram sob a lei Jim Crow de segregação racial. Todos aqueles que têm 51 ou mais anos. Havia muita violência, incluindo aquela perpetrada pela polícia. Essa e outras organizações continuam a ver os afro-americanos de uma forma negativa. Quando as pessoas pobres não conseguem alimentar as famílias nem arranjar trabalho, entram na economia do crime. Não vemos pessoas brancas, de classe média, envolvidas em gangues nas ruas ou a vender drogas. 

Qual é a justificação?
É um sistema de feedback, cibernético. As pessoas brancas pensam que os afro-americanos não são suficientemente inteligentes para serem juízes. É como dizer que uma rapariga é demasiado bonita sendo negra ou um rapaz é demasiado esperto sendo negro. Esses pontos de vista são completamente enquadrados na moldura racial branca. As pessoas brancas que dizem isso nem sequer se apercebem de que agem através de uma única forma de ver o mundo: pela cor da pele. Nunca pensam pensam no racismo institucionalizado do ponto de vista dos mais oprimidos. E estas pessoas de cor olham para a opressão racial de uma forma completamente diferente. Um bom exemplo é que milhões de afro-americanos tentaram fugir das plantações onde eram escravizados na Guerra Anglo-Americana de 1812. Quando os ingleses voltaram, os norte-americanos tentaram expulsá-los, mas eles invadiram Washington D.C. e queimaram edifícios. Os ingleses, nos navios de escravos, prometeram libertá-los da escravatura se fossem para os navios. 5000 afro-americanos libertaram-se e alguns juntaram-se à Marinha inglesa e começaram a atacar os norte-americanos com  armamento, principalmente aqueles que eram os seus donos oficialmente. 

O vosso hino foi escrito apenas dois anos depois, quando ainda decorria o conflito.
Francis Scott Key, que escreveu o The Star-Spangled Banner, era um dos maiores esclavagistas. No terceiro verso, lê-se “Whose broad stripes and bright stars through the perilous fight”. Se é suposto celebrarmos a liberdade, como é que nesse verso são atacados os escravos que se libertaram?Ainda cantamos palavras escritas por um esclavagista. Quão primitivos somos ao lidar com as nossas raízes racistas? Nem sequer conseguimos encontrar uma canção escrita por um americano amante da liberdade. 

Então, a Breonna Taylor, o George Floyd, o Rayshard Brooks e outros são vítimas diretas do racismo sistémico.
A escravatura é a base da nossa História, da nossa riqueza desigual. E para percebermos todos os momentos particulares, como esses assassinatos, temos de entender tudo aquilo que aconteceu no passado. As organizações policiais continuam desproporcionalmente a discriminar os afro-americanos e outras pessoas de cor.

Para publicar “Ghetto Revolts: The Politics of Violence in American Cities”, de 1973, a sua obra nomeada para um Pulitzer, estudou milhares de movimentos da população afro-americana contra o racismo sistémico nas décadas de 60 e 70 do séc. XX. Esses motins são distintos dos atuais?
São similares em muitas coisas. Normalmente, distinguem-se duas características principais das insurreições: as condições socioeconómicas subjacentes – e essas são similares nos dois períodos, até porque a iniquidade racial e a discriminação mantêm-se – e os eventos que as precipitam. Em 1973, explicitei que, nas 5000 revoltas, a brutalidade e a negligência policiais constituíam os grandes eventos. Hoje em dia, as demonstrações não violentas têm as mesmas condições subjacentes. 

Há algum fator diferenciador?
Claro, a participação de manifestantes brancos. Porque, nos anos 60 e 70, eram maioritariamente negros. A pobreza, a discriminação educacional, laboral e habitacional eram denunciadas pelos negros. Mas, agora, os Millenials e a Geração Z unem-se independentemente da cor. 

Não acredita que a segregação racial está a regressar às universidades?
Eu estudei na Baylor University, no Texas. O único estudante estrangeiro era um asiático deficiente que se tornou na mascote da equipa de futebol. Houve segregação até meio dos anos 60. A maior parte das universidades do sul, como as do Texas, da Virgínia ou do Alabama, eram historicamente brancas. No norte, havia alguns estudantes negros, mas eram informalmente discriminados. E temos de manter em mente que as revoltas surgem, agora, também pela continuidade da segregação nas cidades, porque a mesma voltou às escolas. Gradualmente, nos anos 70, 80 e 90, não só nas instituições de Ensino Superior mas também nas de outros níveis de educação, a população branca – de vários pontos do país – inscreveu os filhos em escolas privadas e deixou as escolas públicas novamente segregadas, até mais do que eram nos anos 60. É óbvio que isso cria revolta, frustração e vontade de partir para o protesto. E não falo apenas nos negros, mas também nos latinos.  

Como é que os oprimidos podem organizar-se para forçar mudanças em grande escala nos sistemas de opressão? Escreveu que “para reduzir ou eliminar o racismo sistémico agora e no futuro, os afro-americanos e outros americanos de cor devem novamente organizar-se coletivamente para criar instituições sociais, económicas e políticas mais igualitárias e, assim, finalmente implementar os antigos ideais dos EUA de liberdade e justiça”.
Mudar uma sociedade tão assente na opressão racial é muito difícil. Tinha de haver algo como o Movimento dos Direitos Civis nos anos 60, em que milhões e milhões de afro-americanos juntaram-se para protestar. É preciso que todos os países se juntem. Tem de haver protestos em massa.

O movimento Black Lives Matter é um bom exemplo?
Foi considerável, mas não se aproximou da escala necessária para a obtenção de mudanças significativas. As demonstrações perante a brutalidade policial trouxeram multidões às ruas, o sistema político foi claramente pressionado, mas demorámos 15 anos para conseguir algo no passado. E as condições societais também proporcionaram a mudança. 

A Guerra Fria foi uma ajuda, por assim dizer?
Os EUA competiam contra a União Soviética e, cada vez que havia incidentes com as autoridades, a URSS fazia questão de que imagens de crianças negras ou latinas a sofrer fossem publicadas nos jornais.

E depois?
A Guerra do Vietname durou 20 anos. O John F. Kennedy e o Lyndon B. Johnson precisavam de soldados negros a combater. Havia uma razão para o partido democrático terminar com a segregação, porque não havia outra forma de conseguir que os negros servissem no exército norte-americano. 

Ou seja, o problema atual é a falta da adesão das massas? Não é o tempo certo para conseguir a mudança?
O trumpismo levou à emergência da supremacia branca. A presidência do Donald Trump representou um recuo em qualquer tipo de evolução. A administração Trump encarou o Black Lives Matter como revolucionário e tentou dissipá-lo. E pior: quis calar os manifestantes brancos em cidades como Portland ou Oregon. 

O que pensa sobre a atuação geral do partido republicano?
Transformou-se no partido dos brancos desde os anos 60. Curiosamente, começou com o Abraham Lincoln, que ajudou a libertar escravos, mas mudou radicalmente. Cerca de 60% da população branca vota nos republicanos. 

Será que podemos dizer que Donald Trump foi o Presidente mais racista da História dos EUA? Refere-se às nações africanas como “países de merda”, diz às congressistas de cor para voltarem para o país de onde vieram, afirma que os imigrantes mexicanos são violadores, recusa denunciar os supremacistas brancos. Mas 12 dos 17 primeiros presidentes eram esclavagistas.

A divisão política nos EUA tem que ver com o seguinte: o partido republicano é maioritariamente branco deliberadamente e tornou-se ainda mais racista com Donald Trump. E supremacista, com personalidades como o congressista neo-nazi Jeff Miller a apoiarem o partido. E os imigrantes são fortemente atacados: os negros, acima de tudo. Por outro lado, os protestos e a linguagem viciosa são dirigidos essencialmente aos imigrantes da América Latina.

E o partido democrata?
É muito diverso. 40% dos brancos votam nele e, 60%, votam no partido republicano. Os democratas ganham por causa dos eleitores de cor. Não nos esqueçamos de que este país é cada vez menos branco demograficamente. Daqui a uns 25 anos, a maioria dos americanos não será branca. No Texas, o segundo maior estado em termos populacionais, os texanos não são maioritariamente brancos como antes. São de origem mexicana, na verdade. A maioria dos bebés é de cor.

Então há a polarização política.
Sim. Como se os republicanos representassem a anti-democracia.

Isso é curioso, porque os imigrantes também votaram em Trump.
Essa percentagem é muito reduzida. Temos sempre pessoas que são do contra, como se costuma dizer. Neste caso, são mais jovens, estão zangados porque acreditam que os democratas não fazem o suficiente, têm tendências misóginas e apostam na hipermasculinidade. Por exemplo, 1/3 dos mexicanos votaram em Trump, mas 2/3 votaram em Joe Biden. Minorias são minorias, mas é claro que quem votou em Trump gosta da forma como ele vê as mulheres, como assume que é um violador. Mas outros votam nele por razões diferentes, imaginemos, trabalham no controlo das fronteiras e sabem que, se ele tivesse outro mandato, reforçaria essa vertente. 

Como descreveria o antagonismo entre os dois partidos?
Resumindo, os republicanos são anti-democratas, esmagadoramente brancos e tentam suprimir os votos das pessoas de cor, agressivamente, há mais de 40 anos. Os democratas têm os negros como espinha dorsal – foram eles que puseram Biden na Casa Branca – e, assim, tentam suportar as manifestações não violentas na direção da melhoria da riqueza e das condições dos afro-americanos e da extensão do voto a toda a população.

E o trumpismo?
Não é novo, porque o partido republicano tornou-se branco desde o mandato de Richard Nixon. Regressando à ideia de que Trump é o Presidente mais racista, tal não ajuda a explicar muito bem a questão porque todos os brancos crescem com a tal moldura racial branca integrada. Aprendemos estereótipos sobre toda a gente de cor e acerca da superioridade branca. Todos os presidentes norte-americanos seguiram essa linha de atuação que foi mais vincada na administração Trump, todavia, os presidentes brancos fizeram-no sem exceção, somente não foram tão excessivos. Há quase cem anos,  Woodrow Wilson era abertamente segregacionista e racista, mas efetivamente Trump é o mais agressivo ao usar expressões como “países de merda”. 

Então Trump ultrapassou os limites daquilo que já não era razoável.
Não tínhamos um Presidente assim desde os anos 20 do século XX. Um cliché para descrevê-lo é: todos os norte-americanos são racistas ou racistas em recuperação. Eu sou um deles, combato o racismo desde o início da minha vida adulta. Cresci com todos os adultos brancos do Texas a usarem aquela palavra começada por n – nigga – para descreverem as pessoas negras. Ouvi-a constantemente até aos 20 anos, só que fui capaz de reformular as minhas crenças. Não é útil referirmo-nos a Trump enquanto “o mais racista”, devemos é dizer que opera no extremo da moldura racial branca. Os brancos nos EUA e na Europa não costumam desafiar o seu próprio pensamento sobre a superioridade branca perante as pessoas de cor.

Em “Yes We Can”, analisou a campanha presidencial de Barack Obama. O enquadramento racial foi implementado pelas personagens principais? Argumentou contra a crença de que a vitória de Obama inaugurou uma nova era pós-racial.
A História é cíclica. A segregação racial pareceu terminar por volta de 1960, mas existem vários pontos-chave. Bill Clinton perdeu o voto popular, a administração Bush recuou na abertura ao voto das pessoas de cor que não pararam de lutar e conseguiram colocar Barack Obama no poder. Mas ele obteve uma minoria de votos da população branca. Mais ou menos a mesma percentagem dos eleitores que votaram no Biden. Houve uma melhoria, algo dialético que lembra o reforço dos direitos civis, levada a cabo por Obama, tal como a tentativa da eliminação da discriminação laboral. E Trump ganhou porque existe o ressentimento racial na população branca. E, mais uma vez, o colégio eleitoral, criado por esclavagistas, perdeu o voto popular para Hillary Clinton. E, há poucos dias, para Joe Biden. Mas o cariz anti-democrático desta instituição permanece, nunca nos livrámos dele, desde os tempos em que beneficiava os grandes proprietários e os estados pequenos. É este colégio, esta entidade, que permite que a História recue e avance. No fundo, nem Trump nem Bush teriam sido eleitos se vivêssemos sob a égide de um sistema parlamentar democrático, mas Obama e Biden sim.