Inicio aqui um conjunto de textos (três, pelo menos) sobre alguns “bacilos de peste” que vêm tomando conta de algumas (só algumas – resistamos ao bacilo da generalização) partes do nosso sistema de justiça; e, no título, judiciário vai no seu sentido amplo, abrangendo juízes, procuradores e advogados, pois não há grupos isentos de pecado nem grupos titulares da virtude, embora estes pecados sejam mais graves em quem enverga a beca, pela natureza das funções, e a gravidade atinge o auge onde deveria estar o auge da garantia e do rigor, ou seja, na magistratura judicial, cujas decisões são (devem ser), como se diz (e bem), documentos da República. O primeiro destes textos é sobre “conversas de snack-bar”, o segundo será sobre o copia, corta e cola (o magnífico copy & paste) e o terceiro sobre o escrutínio público do sistema de justiça – o qual é bem menor do que parece e é amiúde equivocado e enganoso, o que, além de ser um mal em si, também permite que outros males façam carreira. Claro que haverá quem veja nas minhas palavras intenções outras que não apenas refletir e discutir as questões e os problemas. É costume, tanto me faz, estou vacinado. E tenho provas, várias. Podemos vê-las, é só quererem. E nem são precisas, é público e notório, para quem quiser ver e tirar consequências. Alguém quer? Alguém pode?
Nos primeiros anos de 80 do século passado, o meu pai teve um snack-bar, e eu, naquela idade incerta entre a infância e a adolescência, andava por lá nos tempos livres e dava uma ajuda. Chamava-se “Charlot” (nem por acaso, nome tristemente apropriado para alguns temas destes textos) e tinha um balcão daqueles metalizados e com bancos altos. “Ó puto, uma imperial”, “ó puto, uma bica”, “ó puto, uma Macieira.” A Macieira era sempre uma chatice porque queriam acima do risco azul ou vermelho do cálice (eram cálices de risco) e o meu pai tinha dito que não. E eu cumpria. E era um problema. Mas, em contrapartida, as conversas – entre a bica, a imperial e a Macieira – eram uma delícia; dois dedos de conversa, desabafos, estados de alma, opiniões, generalidades e generalizações, preconceitos e pré-conceitos, azias, vontades ou declarações de mudar o mundo, dichotes, processos de intenção, muito “isto só pode ser”, “está-se mesmo a ver”, “p… que os pariu”, “pois, a mim não me comem por parvo”, etcetera e tal. Um mundo de sentenças rápidas, tantas vezes tão fartas quanto impressionistas, clichés (uns melhores, outros piores, mas clichés), uma mistura de factos, emoções, sonhos, frustrações e ambições. Um processo breve de digestão e azia, um alívio que ficava ali, vagamente espelhado na superfície metálica do balcão; para isso também serve um snack-bar. E não tinha mal nenhum, era conversa deitada fora, lavava a alma, aliviava, e bebida a Macieira, cada um ia à sua vida. É mais ou menos como uma conversa de táxi: desopila, mas não é ciência, e não tem outro efeito para além do tempo da corrida.
Ora, 30 e muitos anos depois, mato saudades destas conversas. Mas agora – quando já não ajudo nas horas vagas num snack-bar e já não luto (exceto metaforicamente) pelo risco do cálice de Macieira – é em processos, nos tribunais e afins. Em alguns – em peças escritas (inclusive decisórias, sim, várias vezes) ou em intervenções orais – temos (dentro deles e, às vezes, “para fora” dos processos) um mero registo de “conversa”, e desabafos, estados de alma, opiniões, generalidades e generalizações, preconceitos e pré-conceitos, azias, vontades ou declarações de mudar o mundo, dichotes, processos de intenção, e mesmo “isto só pode ser”, “está-se mesmo a ver”, “p… que os pariu”, “pois, a mim não me comem por parvo”, etcetera e tal. Aqui e ali há perfídia, mas nem sempre é tanto assim. Algumas vezes é só falta de empenho e de esforço, pois o rigor dá trabalho, e muito, faz suar; e nem sempre dá aplauso ou popularidade (essa atual medida de tantas coisas). O que também é uma forma de perfídia, e até talvez pior, porque superficial, descuidada, trapalhona e/ou ávida de incenso, o que junta aos pecados capitais que aquela convoca um outro, que é letal (e provoca asco, sobretudo quando tem graves implicações na vida de pessoas): a preguiça.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira