O passado colonial que nas Fontainhas a que ao longo de anos Pedro Costa dedicou o seu cinema continua a fazer-se presente, uma história de passagem à vida adulta no retrato de Hou Hsiao-hsien da Taiwan da viragem do milénio. Ou da Paris pós-apocalítica que Chris Marker imaginou na década de 1960 para a hipótese de uma guerra nuclear, uma III Guerra Mundial que nos contava a preto e branco através do olhar de um homem feito prisioneiro. O passado que assombra o presente pelo qual vagueiam as personagens de Juventude em Marcha, de Pedro Costa, não é o mesmo que tomam como referência os cientistas que na curta-metragem realizada por Marker em 1962 procuram descobrir uma forma de viajar no tempo. Para o passado ou para o futuro, numa tentativa de resgatar o presente. Quem sobreviveria ao choque de uma viagem no tempo?
“Foi sucessivamente anunciado o fim da história, das ideologias, do tempo e até do mundo, arrastando consigo a vida e a morte das cidades que, de abandonadas, depois, edificadas, arrasadas, prometidas ou sonhadas, renasceram e transformaram-se em mundos imaginados, histórias recontadas e revoltas mais ou menos cumpridas”, lê-se no texto de apresentação da edição do Porto/Post/Doc de 2020, que arranca na sexta-feira com A Utopia Americana de David Byrne, de Spike Lee. “Neste intenso agora, que é sempre o tempo do depois, as cidades já não são abrigos, deixando, inexoravelmente, sem-abrigo os mais vulneráveis dos seus cidadãos. Sem sonho que abrigue, sem utopia que abrigue, sem urbanidade que abrigue: o que nos mostra da cidade o cinema? A cinecittà é a possibilidade de um mundo inteiro e os cidadãos, por muito confinados que estejam, são pontos brilhantes de luz que animam a vida, seja na música de uma utopia Byrne, no reviver das sublevações anti-racistas de Martin Luther King ou nos subúrbios de Lisboa e de L.A. pelos passos de Ventura e de Stan”.
Do olho de um furacão que trará certamente mudanças, poderá ser ainda difícil imaginar sobre que chão se reconstruirão, de novo, as cidades que começam, entre numa pandemia para a qual não se vislumbra ainda um fim, a ver-se de novo desertas.
Num ano em que a ideia de cidade de La Jetée se tornou mais real pela Europa do que a imaginávamos neste século possível, o Porto/Post/Doc arranca às portas de um fim de semana de recolher obrigatório que condicionará a programação, mas faz questão de a manter em sala – ainda que com uma extensão online, à qual será possível assistir na totalidade com uma assinatura no valor de 12 euros. Ainda pensando as cidades, e a tentativa de encontrar entre o passado e o futuro formas de resgatar o presente, Juventude em Marcha (2006), Millennium Mambo (2001) e La Jetée (1962) são apenas três dos dez filmes que o Porto/Post/Doc reúne no ciclo A Cidade do Depois, que inclui ainda A Invenção Do Amor (António Campos, 1965), Bless Their Little Hearts (Billy Woodberry, 1983), City Dreamers (Joseph Hillel, 2018) Killer Of Sheep (Charles Burnett, 1978), Paris Qui Dort (René Clair, 1925), The Exiles (Kent Mackenzie, 1961) e Two Years At Sea (Ben Rivers, 2011).
Uma seleção de filmes projetados em sessões em diálogo com o Fórum do Real, secção de debates que, como é já habitual no festival, se propõe a pensar o cinema contemporâneo em diálogo com a sociedade de que é também produto. A esta edição, do tema A Cidade do Depois nascem três conversas a que será também possível assistir online com os oradores Billy Woodberry, Maria João Madeira, Marie-José Mondzain e Pascale Cassagnau (História(s) da Cidade), Ana Aragão, André Cepeda, Paulo Pires do Vale (Cidades Imaginadas) e Boaventura de Sousa Santos, João Salaviza, Roger Koza, e Ana Cristina Pereira (Fuck the Polis, num trocadilho com “fuck the police”).
Numa edição realizada em semanas de recolher obrigatório devido à pandemia, as secções do Porto/Post/Doc mantêm-se. Em competição são exibidos A Nossa Terra, O Nosso Altar, de André Guiomar, Amor Omnia, de Yohei Yamakado, Days of Cannibalism, de Teboho Edkins, Goodbye Mister Wong, de Kiyé Simon Luang, My Mexican Bretzel, de Nuria Giménez, Of Land and Bread, de Ehab Tarabieh, Partida, de Caco Ciocler, Piedra Sola, de Alejandro Telémaco Tarraf, Sandlines, e The Story Of History, de Francis Alÿs.