Carta aberta ao Ministério da Saúde: Proteger o Cidadão, proteger o Serviço Nacional de Saúde

Carta aberta ao Ministério da Saúde: Proteger o Cidadão, proteger o Serviço Nacional de Saúde


“Se falharmos reiteradamente neste propósito civilizacional que é a defesa dos cidadãos e da sociedade e de um dos seus maiores valores – o Serviço Nacional de Saúde – restar-nos-á, no fim do dia, a implacável decisão de implementar o confinamento generalizado forçado”


Portugal é um Estado de direito assente numa democracia constitucional, com as responsabilidades do Estado e os direitos e as liberdades fundamentais dos seus cidadãos devidamente consignadas na Constituição. A expressão pandémica associada à infeção pelo SARS-CoV-2 ameaça esses valores. É missão de cada um de nós, individualmente, e de todos nós, coletivamente, saber traduzir para um efetivo bem público o que tem resultado do progresso científico e do crescente conhecimento que detemos sobre este novo vírus. Sobre o seu potencial patogénico, sobre a sua transmissibilidade, sobre as melhores estratégias de prevenção e de Saúde Pública, sobre as melhores estratégias de mitigação quando falhamos nos pressupostos essenciais do seu controlo efetivo. Sendo Portugal um Estado de direito, pluralista e democrático, com instituições bem firmadas, podemos pressupor que estaremos mais bem preparados para lidar com as exigências inerentes à pandemia que nos ameaça. Infelizmente, não é esse o cenário. Os números de grandeza crescente fazem prever resposta insuficiente e rotura do sistema. Não é admissível este estado de resignação e de contemplação impotente da realidade que interessa abortar, para que se proteja o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e, assim, se proteja o cidadão.

De março a agosto

No início de março de 2020, há 8 meses, a declaração do estado de pandemia pela Organização Mundial de Saúde espoletou na Medicina Intensiva portuguesa, e em senso lato nas instituições hospitalares, processos internos de reorganização de base estrutural e funcional. Esta adaptação dos Serviços de Medicina Intensiva visa, ainda hoje, acomodar a exigência de resposta assistencial médica a doentes críticos com infeção pelo vírus SARS-CoV-2 (COVID-19) e a doentes com outro tipo de patologia crítica (não-COVID-19). É verdade que vencida a primeira vaga, vivida entre março e maio de 2020, houve uma redução muito significativa da atividade assistencial dedicada à COVID-19. Protegeu-se com eficácia o cidadão e protegeu-se o SNS. É, no entanto, muito relevante recordar a outra realidade que emergiu dessa primeira vaga: a suspensão da atividade clínica programada e a necessidade consequente de lhe dar resposta nos meses subsequentes. A Medicina Intensiva tem vivido, nesse contexto, de forma generalizada nos hospitais portugueses, tempos de exigência e de disponibilidade para prestação de cuidados de saúde muito acima da sua real capacitação, com taxas de ocupação superiores a 90%. Este indicador isolado traduz uma capacidade de acréscimo de resposta assistencial já muito limitada. É igualmente relevante referir que hospitais que compõem a base de sustentação da atividade médica mais exigente e diferenciada no Serviço Nacional de Saúde mantiveram uma capacitação de internamento em Medicina Intensiva superior à que apresentavam antes de março de 2020. Essas decisões, de caracter institucional, constituíram respostas adaptativas positivas, traduzindo a resiliência dos profissionais de saúde e em larga medida dos conselhos de administração. Porque decorreram sem um aumento efetivo do número de profissionais, nomeadamente especialistas em Medicina Intensiva, conduziram a prestação de mais longo e mais intenso trabalho hospitalar. Esta realidade não tem vindo a merecer exposição pública, porque há nas equipas dos Serviços de Medicina Intensiva um entendimento de que este é um tempo conjuntural que exige e merece uma dedicação e um esforço maximizado, apenas possível porque conjuntural, e a sua citação só é relevante para entender a capacidade limitada em aumentar adicionalmente a resposta efetiva dos Serviços de Medicina Intensiva, na sua atual estrutura.

Onde estamos, após 8 meses de evolução da pandemia no nosso país?

Não estamos bem. Estamos numa fase ascendente da curva pandémica em modo de navegação sem radar, desconhecendo em absoluto quando esperar os picos de incidência e de prevalência da pandemia. Conceitos associados a modos de transmissão, comportamentos de risco epidemiológico, riscos e consequências clínicas em diferentes faixas etárias, base populacional de incidência ou débil equilíbrio entre capacidade assistencial COVID-19 e não-COVID-19 são conceitos difusamente ausentes nos nossos cidadãos. Mais grave, porque se coloca além dos limites de domínios estritamente científicos, há a latente rotura epistemológica associada à corrosão da coesão social e do compromisso inter-geracional. A dotação tecnológica adicional dos Serviços de Medicina Intensiva foi uma intervenção estrutural pertinente, mas com limitado impacto na real dotação assistencial, uma vez que são necessários recursos humanos para a sua ativação. É verdade que está em curso um concurso para dotar os hospitais com médicos a alocar aos Serviços de Medicina Intensiva, no entanto serão maioritariamente médicos a iniciarem a sua formação em Medicina Intensiva. Acresce que é necessário, igualmente, aumentar significativamente a dotação de enfermeiros, elementos essenciais na prática da Medicina Intensiva. Existem, pois, fundados receios que se pronuncie, com relativa indiferença e resignação, uma situação de difícil reversão, com compromisso sério da defesa dos cidadãos e com desmembramento do SNS.

Onde falhámos e o que temos que fazer?

Falhámos em três vertentes determinantes: no modelo de comunicação, no modelo de preparação do sistema de saúde e no modelo de intervenção para minimização da transmissão viral comunitária.

1. Modelo de comunicação: a comunicação é indispensável para a promoção da cultura cívica e para a convocação da sociedade para uma demanda coletiva e global. Precisamos de clara identificação do objetivo dos conteúdos comunicados e de estratégias diferenciadas dirigidas a setores da sociedade distintos. Precisamos de erradicar conteúdos punitivos ou ameaçadores sobre escolas ou setores da população e de erradicar a fragilidade da solidez científica com que algumas informações são transmitidas. Sem informação de qualidade, sem cidadãos devidamente informados e sem conteúdos claros, a convocação coletiva para um objetivo comum – a proteção do cidadão e da sociedade – é inatingível e a responsabilização do cidadão impraticável. Rever o modelo de comunicação e dotá-lo de algum profissionalismo técnico e de credibilidade, separar matérias políticas de matérias que são estritamente científicas, convocar os cidadãos para um propósito transversal a todos os setores, evitando fissuras na coesão social, identificar os conteúdos verdadeiramente impactantes e evitar intervenções reativas, parecem ser medidas exequíveis e de relevante impacção. Devemos igualmente tornar a informação existente disponível a todos, favorecendo a transparência das decisões e facilitando a contribuição de todos os cidadãos. Esta causa exige-nos a todos e como tal todos têm de ser convocados e ganhos para a causa.

2. Modelo de preparação e preservação do SNS: a preparação do SNS carece do reconhecimento das suas potencialidades e das suas fragilidades, percebendo que o balanço do que for feito ou do que for omisso será determinante num prazo longo e imprevisível. Na contenção da primeira vaga associada à pandemia COVID-19, foi adotada uma estratégia que se revelou eficaz, mas rapidamente foi percebida a inadequação do modelo de suspensão de atividade programada. Precisamos de medidas que potenciem os recursos existentes e que permitam a capacitação adicional do SNS, incluindo, de forma equilibrada e harmoniosa, camas, equipamentos e recursos humanos. Se essa capacitação não incluir a totalidade destes elementos será desperdício e inutilidade. Há que promover a autonomia de gestão hospitalar, sustentada em critérios de máxima eficiência e de adição de valor, para efetivação dessa capacitação, permitindo recrutar profissionais de qualidade com propostas suficientemente apelativas. Temos que pugnar pela elaboração e ativação atempada e síncrona de planos de contingência que preservem a capacidade assistencial COVID-19 e não-COVID-19 e promovam, com equidade, a lógica de cooperação, complementaridade e solidariedade do SNS. Temos que desenhar um modelo operacional, identificando indicadores adequados e definindo responsáveis pela sua implementação, monitorização e melhoria.

3. Modelo de intervenção para minimizar transmissão comunitária do vírus e assim achatar e, se possível, esmagar a curva: A capacitação da resposta é essencial, mas nenhum sistema é capaz de uma resposta infinita. Como tal, há que modular a procura, isto é reduzir a incidência da infeção, pela minimização da transmissão vírica. A janela de tempo para o fazer é escassa. Há que o fazer agora. A minimização da transmissão inter-pessoal do SARS-CoV-2 deverá ser o objetivo central duma estratégica global. O modelo de medidas sequenciais e incrementais, que parece estar a ser seguido nesta altura, parece-nos insuficiente, sem impacto e consumidor de tempo. Urge definir um conjunto de medidas simultâneas, com elevada probabilidade de significativo e rápido impacto na redução da transmissão de vírus, aplicadas a uma escala claramente supra-municipal, eventualmente regional, e por um tempo suficientemente largo, percebendo que proteger o cidadão e o SNS implica, neste momento, a definição regionalizada de medidas de Saúde Pública diferenciadas. Só assim conseguiremos tratar todos os portugueses, com COVID-19 e com outras patologias, com qualidade e com equidade, nomeadamente evitando cessar a atividade médica programada. Para que estas medidas sejam possíveis, mesmo à escala regional, cremos ser necessária a declaração do estado de emergência, aliás já instituído em sete países europeus.

As projeções e previsões não são um fim em si mesmas. São realizadas para melhor planear a resposta que as destrua e as negue. As previsões não são fatalidades. Prevemos para modular o futuro. Para o modular, precisamos de planear e intervir. O momento é agora. Assim nos dizem as previsões. Se falharmos reiteradamente neste propósito civilizacional que é a defesa dos cidadãos e da sociedade e de um dos seus maiores valores – o Serviço Nacional de Saúde – restar-nos-á, no fim do dia, a implacável decisão de implementar o confinamento generalizado forçado. A suspensão da nossa vivência em domínios tão matriciais, como sejam o económico, social, escolar, universitário, cultural, espiritual, desportivo, lúdico, terá efeitos devastadores, que perdurarão por tempo indeterminado. Se agirmos agora, será ainda possível evitá-lo.

 

Posição da Direção do Colégio de Especialidade de Medicina Intensiva da Ordem dos Médicos, subscrita pelo Bastonário da Ordem dos Médicos

José Artur Paiva, João Miguel Ribeiro, Francisco Esteves, Paula Coutinho, José Júlio Nóbrega, Eduardo Melo, João Gonçalves Pereira, Paula Castelões, Paulo Martins