Portugal atingiu ontem um novo máximo diário de casos de covid-19 e as diferentes projeções que têm sido conhecidas apontam para um agravamento nos próximos dias, sendo esperado que o país passe os 4 mil casos diários. Na distribuição por faixa etária, os dados da Direção-Geral da Saúde mostram que a maioria dos contágios surgem na população mais jovem, mas a subida de casos que se acentuou no último mês verifica-se em todas as idades e também nos idosos – um aumento na casa dos 40% na última semana.
De 12 a 26 de outubro, os últimos dados analisados pelo i referentes ao período entre segunda-feira e domingo, os casos detetados em pessoas com mais de 70 anos, os grupos de maior risco, passaram mesmo pela primeira vez o patamar dos 2 mil novos infetados. Foram ao todo 12% dos novos casos, uma percentagem que se tem mantido estável, mas foram 2325 novos casos em pessoas com mais de 70 anos, 1110 em septuagenários e 1215 em pessoas com mais de 80 anos. Na semana anterior, de 12 a 19 de outubro, tinham sido 1657 casos nesta faixa etária, na anterior 978 e na anterior 884, números já bastante superiores ao que aconteceu em setembro. Nas últimas duas semanas superou-se mesmo o que aconteceu no pico da epidemia, em abril, quando, percentualmente, esta faixa etária era mais afetada: na semana de 6 a 13 de abril, aquela em que se registaram mais casos de covid-19 no país antes desta nova vaga de infeções, foram diagnosticados 1539 casos em idosos nesta faixa etária. Ao mesmo tempo têm agora aumentado as mortes, a maioria nestes grupos etários, e tudo faz prever um agravamento da mortalidade nas próximas semanas, como aconteceu na primeira onda de infeções. Desde o início do mês foram reportadas 418 mortes por covid-19 no país, mais do dobro dos 153 óbitos registados no mês de setembro. Em março foram registadas 187 mortes por covid-19 em Portugal. Em abril, o número subiu para 820 óbitos.
Proteger os grupos de risco O virologista Pedro Simas, que nos últimos meses alertou para a necessidade de proteger os grupos mais vulneráveis, em particular à medida que se desconfinava e o risco de contágio passava a ser maior, admite preocupação com o aumento de casos na população mais idosa. O investigador sublinha, no entanto, que apesar de as mortes em lares terem representado 40% dos óbitos, isso significa também que a maioria dos óbitos foram de idosos que não estariam em instituições quando se contagiaram. Se, nos lares, acredita que houve melhorias em relação à primeira onda, com medidas como a testagem preventiva, que já avançou em algumas instituições, e as brigadas de intervenção rápida criadas pelo Governo, considera que há uma mensagem para toda a população que não tem sido interiorizada. “Penso que era fundamental termos alguma ideia a esta altura de que percentagem de novos casos se deve à não adesão às regras e recomendações que têm sido feitas”, diz, reforçando o alerta: “A maior parte da população de risco não vive em lares. São os avós, os tios mais velhos, os nossos vizinhos. O uso de máscara, o distanciamento, evitar convívios em espaços fechados sem proteção é essencial. É preciso que todas as pessoas tenham presente que, neste momento, quem nos vai infetar são os nossos familiares, os nossos amigos, os nossos colegas, as pessoas com quem temos contacto mais próximo, porque há menos contactos com estranhos no geral. A unidade funcional é a família, que tem de ter cuidado quando está junta, evitar momentos de proximidade como festas e batizados, onde têm ocorrido muitos casos. Há famílias inteiras que se infetaram dessa forma”.
No país, as últimas indicações da DGS são que a maioria dos contágios têm ocorrido em convívios familiares, mas houve ainda uma análise por grupo etário. Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, considera que seria importante perceber os contextos de maior contágio para perceber que medidas tomar e que mensagens importa transmitir. O médico admite que, com a subida dos casos, era expetável um aumento de infeções também nos grupos de risco, dado que a sociedade não é estanque. Concorda que, nos lares, a situação pode ser menos gravosa do que foi em abril, mas entende que a mensagem sobre o risco não tem sido apreendida pela população como seria desejável. Ideias como “é família, por isso não há problema” continuam a ouvir-se. “Espero que deixem de ser e que exista um reforço da sensibilização”.
Sobre a hipótese de um recolher obrigatório, nomeadamente na região Norte, o médico defende também que importa identificar as vulnerabilidades e os locais de contágio para ponderar qualquer medida e explicá-la à população. E dá o exemplo da proibição de circulação entre municípios no próximo fim de semana: “Se a preocupação era a concentração de pessoas nos cemitérios, podiam impor-se regras, lotações, limitação de acessos. E informar as pessoas de que, se estão na terra ou em família, devem usar máscara, evitar reuniões familiares alargadas e, sobretudo, às refeições”.
SIndicato pede médicos fixos nos lares Para Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), os problemas nos lares não ficam resolvidos por haver menos surtos nesta altura, antevendo um agravamento da situação. Ao i, o médico de família e dirigente sindical sublinha que as brigadas criadas para intervir rapidamente em surtos têm um papel limitado no acompanhamento dos idosos e das instituições. “O aparecimento de surtos e necessidades de acompanhamento dos mais idosos vem dar-nos razão mais cedo do que se supunha”, diz o dirigente, tecendo críticas ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social e ao Ministério da Saúde: “Preferiram ignorar o problema e criar as brigadas, que neste momento são pouco eficientes e pouco operacionais”.
Roque da Cunha afirma que o aumento de casos, que irá levar a um maior envolvimento dos médicos de família e hospitalares, torna premente que os lares tenham um quadro médico próprio, para não serem desviados médicos do SNS. A proposta foi apresentada no último domingo numa audiência com o Presidente da República: o SIM defende que devia ser obrigatório os lares terem médicos contratados, o que devia ser assegurado, nos primeiros seis meses da medida, pelo Estado, até o pagamento ser assumido pelas instituições, atualmente “mais exauridas do ponto de vista financeiro e de recursos humanos”, diz o médico.
Roque da Cunha apresenta contas que lamenta não tenham sido incluídas no Orçamento Suplementar ou na proposta de Orçamento. “Se o Estado comparticipa cada utente de um lar com uma diária de cerca de 360 euros, com mais um euro por mês, um lar com dez utentes teria 300 euros para contratar um médico para lá ir, por exemplo, semanalmente e ficar responsável pelo acompanhamento dos utentes”.
Nas brigadas de intervenção rápida, que iniciaram funções no mês passado, a Cruz Vermelha Portuguesa recorreu a prestadores de serviços depois de não ter sido possível contratar médicos. Roque da Cunha, que criticou o modelo, defende que há médicos disponíveis no país para assumir essas funções se contratualizadas. “Há uma questão estrutural que é necessária, um acordo coletivo de trabalho para os lares em que fique tipificado quais as obrigações, intervenções e competências dos médicos nas instituições”. No final da semana passada havia 107 surtos ativos em lares, com cerca de 1400 utentes e 570 funcionários infetados. No pico da epidemia, em abril, chegou a haver 365 lares com surtos ativos em simultâneo, com 2500 idosos infetados.