À frente da Cáritas Portuguesa há 20 anos, Eugénio Fonseca diz que nunca tinha havido um aumento abrupto dos pedidos de ajuda como no início desta pandemia. Pela primeira vez, foram milhares os pedidos a que não conseguiram responder ao longo dos últimos meses e encaminharam para outras instituições. Alerta que esta crise será maior, mais agressiva, e lamenta que no plano de recuperação de António Costa Silva pouco se tenha refletido sobre as necessidades prementes e maior resposta a problemas sociais, “o eixo da roda”. Numa conversa com imagens duras em vésperas do Dia Mundial de Erradicação da Pobreza, que se assinala este sábado, deixa um apelo: pode haver dinheiro e apoios no Orçamento do Estado, mas sem uma “guerra à burocracia” os que estão para trás na fila ficarão ainda mais para trás. Identifica como problemas crónicos do país a falta de planeamento, a governação pelo imediatismo e a atomização dos ministérios. Denuncia o estigma em torno da pobreza e do Rendimento Social de Inserção, uma prestação social que diz ter sido contaminada por populismos e pelo desinteresse do próprio Estado.
A pobreza envergonhada continua a existir nas mesas de cafés e bancos de jardim e casos como o da mãe que deixou um bebé à porta de uma igreja são situações limite, mas há outras mais invisíveis, alerta. Defende que todos os apoios sociais deveriam ter associado um contrato que devolvesse as pessoas à socialização em vez de serem remendos conjunturais e diz que as estatísticas não captam a realidade de quem tem ficado para trás no país, incluindo as do desemprego. Por salários dignos, que não são uma realidade para muitos portugueses, defende que o aumento do salário mínimo deve ir o mais além possível, mas alerta que sem apoios, subir os salários pode conduzir à morte de mais empresas.
Disse há umas semanas que a Cáritas não tem conseguido responder a todos os pedidos de ajuda que está a receber este ano. Está à frente da Cáritas há 20 anos. Já tinha acontecido antes?
Não com estas dimensões, ou melhor, com estas características, porque em termos de dimensões julgamos que ainda está muito por acontecer.
Receberam quantos pedidos novos?
Entre março e maio/junho tivemos cerca de 50 mil novos pedidos de ajuda, o que é um aumento de 48% em relação ao ano passado. Destes, do balanço que fizemos nas diferentes dioceses no início de setembro, foi possível dar alguma resposta a 26 128 pessoas. Sabemos que isto vai agravar-se. O que esta crise trouxe de novidade, e que na crise de 2018 não tivemos, foi que só naquele primeiro mês houve um boom de pedidos para satisfazer necessidades básicas como alimentação, pessoas que de repente ficaram sem meios de subsistência.
Como se caiu assim?
De repente as empresas, dado o confinamento, deixam de poder produzir. O Governo começa a tomar medidas mas, entre as decisões e candidaturas a layoff e respetiva aprovação, houve quem não tivesse disponibilidade para pagar vencimentos e houve pessoas que ficaram um mês e tal sem dinheiro. E isto revela uma coisa que é importante que se diga: nos últimos anos o crescimento económico aconteceu muito com base em baixos salários.
Fala de setores como o turismo, onde se criou certa aura?
Foi um setor que fez crescer economicamente o país, de facto, mas isso também à custa de contratos precários e de salários pouco dignos. E chegados aqui, muito poucas pessoas tinham o amortecedor que vale em qualquer crise que são as poupanças. As famílias nos últimos anos tiveram poucas possibilidades de fazer poupanças. Os salários baixaram – e basta pensar os licenciados em caixa de supermercados a receber o ordenado mínimo, restruturações de empresas que negociaram saídas para reformas antecipadas e contrataram pessoas mas a custos mais baixos. Para muitas pessoas, estes foram anos de ganhar e gastar. Também porque em cima disto vieram os problemas da habitação. Com o turismo, apareceu este fenómeno escandaloso do aumento brutal das rendas de casas.
Em março, a Cáritas publicou uma análise em que denunciava obstáculos no acesso a direitos básicos como a habitação. Agravou-se esse problema nos últimos meses?
Tornou-se ainda mais evidente. Um T0 por 600 euros, 700 euros, como é que isto é possível? Para alguns deixou mesmo de ser. Tínhamos casais em que o salário de um ia todo para a casa. Deixou de haver salário, tiveram de ir para casa de familiares, perderam autonomia. É certo que o Governo criou moratórias para que isso não acontecesse, o que foi uma boa almofada, como o layoff também foi. Mas algumas pessoas, mesmo recebendo layoff, não deixaram de nos procurar porque os rendimentos não eram totais e os encargos mantiveram-se e em alguns casos aumentaram.
As contas de estar mais tempo em casa?
Sim, aumentaram as contas da água, da eletricidade. Estas pequeninas diferenças para pessoas com salários baixos significam muito. E há um outro fenómeno, que me preocupa muito pelas consequências que pode ter a longo prazo. Tivemos crianças a quem a alimentação estava a ser equilibrada por terem acesso à escola. As escolas encerraram, os infantários encerraram e deixaram de ter este apoio. Houve iniciativas de solidariedade mas não houve uma medida global que acautelasse que todas tinham resposta e o que está em causa aqui é muito mais profundo do que está à vista. Além das consequências ao nível do crescimento, há uma revolta, um mal-estar, uma perda de horizontes de futuro. E isto é altamente perigoso quando depois disto tudo vamos precisar que as pessoas, que estes jovens, acreditem que é possível reconstruir outra vez.
Agora como estão os pedidos?
Depois desse boom, diminuiu um pouco. As pessoas começaram a trabalhar mas aumentaram também os trabalhadores pobres e essas estatísticas um dia hão de aparecer. Falo disto há muito tempo e ainda recentemente alertei no Parlamento: se conseguimos ter estatísticas objetivas do mercado de trabalho, pelo menos de três em três meses há esses dados, devíamos conseguir ter dados mais atempados sobre a pobreza. Não temos dados em tempo real sobre o número de pessoas no limiar da pobreza. Não conseguimos dizer quantos pobres há em Portugal. O INE há de vir dar esses dados, mais tarde. Todos temos dados por exemplo sobre quem apoiamos, nós, as paróquias, o Banco Alimentar, toda a gente que faz atendimento social. Devia haver uma plataforma conjunta para onde se pudesse reportar informação. Sem dados, não se consegue perceber a dimensão da pobreza. Deixei essa proposta aos deputados na última audição e deixei outra: pelo menos uma vez por ano devia haver um debate da nação só sobre a situação social do país. Nos debates que temos visto nos últimos anos misturam-se todos os problemas e acaba por não se aprofundar nada.
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