Em 2010, quando o céu desabou na ilha da Madeira, os PECs do Sócrates nos contribuintes, e a esperança trazida pelo Obama na realidade, Beatriz Preciado lançava em Espanha Pornotopía: Arquitectura y sexualidad en “Playboy” durante la guerra fria. Um dos temas centrais desse livro era a ideologia subjacente ao “apartamento do playboy”, para o novo tipo de solteirão urbano que surgia nos anos 50, desestabilizando as fronteiras tradicionais de género entre os espaços domésticos e públicos. Segundo o projeto de Hugh Hefner, veiculado abundantemente na revista Playboy (com uma tática do tipo venha pelas mulheres nuas, fique pelo design de interiores), para mudar o homem era preciso mudar o seu apartamento.
Dez anos mais tarde, depois da Troika, durante uma pandemia, e perante a espada de Dâmocles do aquecimento global que nem assim nos tira o apetite, Paul B. Preciado faz-nos regressar aos apartamentos para uma nova remodelação. Nestes ensaios publicados entre 2013 e 2018, maioritariamente no Libération, acompanhamos algumas das mudanças que ocorreram não só no mundo, mas no próprio autor, incluindo a sua mudança de nome e, perante o Estado, de “sexo”. Como expresso no subtítulo, Um Apartamento em Urano: Crónicas da Travessia conta, em parte, a história dessa transição de género, mas também do que a motivou, daquilo que se manteve constante no autor – as fundações da sua identidade, o seu género inominado, inominável, aparentemente masculino mas, na verdade, híbrido, utópico, diluído. Um nómada que, entretanto, renunciou à fluidez para habitar um corpo sempre na fronteira do género, alguém que recusa deixar-se cindir – um “dissidente do sistema sexo-género”.
Seria, assim, inconsequente falar sobre qualquer obra de Paul B. Preciado sem abordar a sua biografia, uma vez que esta é já prova de como a transexualidade e a intersexualidade, por exemplo, são sintomas não “de patologias marginais”, mas da “inadequação da complexidade da vida ao regime político-visual da diferença sexual”. Enquanto a academia discute a subversão, a opressão, e a futilidade do género, Preciado atropela a teoria com o seu próprio corpo, com a sua dissidência, de seringa em punho, cobaia de si mesmo. De forma resumida em Um Apartamento em Urano, mas principalmente em Testo yonqui: Sexo, drogas y biopolítica (inédito em Portugal), Preciado conta como, a partir de 2004, começou a consumir doses contínuas de testosterona, à margem de qualquer controlo médico ou legal, relatando os seus efeitos físicos e psicológicos. Com isso, no entanto, apenas confirmou que não há droga mais dura do que o essencialismo de género que endeusa as pequenas diferenças bio-físico-químicas que cavam um fosso entre duas metades da humanidade. Diferenças essas que foram progressivamente vincadas ao longo do tempo por inúmeras camadas de significados espúrios. Já ouviram o canto de um pavão? É o seu riso perante a importância que damos às diferenças entre as nossas roupas, os nossos apetrechos, as nossas miudezas. Preciado lembra-nos que as nossas caudas coloridas são uma miragem.
Assim como não entendemos a linguagem do pavão – nem o “jaguar ou o ciborgue emprestar-nos-ão a sua voz” –, também Preciado pergunta com que voz podem falar “aqueles a quem se recusou o acesso à razão e ao conhecimento, […] aqueles que foram considerados doentes”. Sugere que se invente “a linguagem da travessia”, que se projete “a voz numa viagem interestelar: traduzir a nossa diferença para a linguagem da norma; ao mesmo tempo que continuamos em segredo a fazer proliferar um blá-blá-blá insólito que a lei não entende”. É precisamente pelo confronto necessário entre essa nova linguagem e a “complexidade da vida” que Preciado sabe que há um caminho a percorrer antes de se realizar qualquer versão de uma utopia do género. Assim como não é dizendo que não há raças que o racismo se resolve por decreto, também não é dizendo que não há géneros que se resolve o sexismo, a misoginia e a transfobia. De qualquer forma, é preciso começar por anunciar que o deus Género está morto, por mais templos e cultos que lhe dediquem: por esta altura, já se torna tragicamente anedótico que, na Califórnia, um incêndio florestal incontrolável tenha começado por uma festa de revelação do sexo de um bebé, assim como que se discuta, em Portugal, a pertinência e abrangência da “cidadania” – no contexto de uma disciplina escolar, mas sangrando já para a partilha de valores básicos em comunidade – apenas porque há quem não aceite que qualquer conceito de cidadania tem de incluir a promoção da igualdade de género e o respeito pelas liberdades individuais. É por isso que Preciado vem “falar-vos a vocês e aos mortos, ou melhor, àqueles que vivem como se já estivessem mortos, mas venho sobretudo falar às crianças malditas e inocentes que hão-de nascer”. A mensagem que deixa é, sobretudo, a rejeição de todas as noções binárias, de todas as fronteiras, e até daquilo a que chamamos de subjetividade, que “não é mais do que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que podíamos ter sido. Sobre essa cicatriz assenta a propriedade, funda-se a família e lega-se a herança. Sobre essa cicatriz escreve-se o nome e afirma-se a identidade sexual”.
De Hefner a Trump, a espiral centrípeta que nos aproxima de um qualquer ralo existencial torna a mudança mais rápida a cada translação. Para abarcá-la, é cada vez mais importante atomizar essa cicatriz, avaliar o que une e o que muda em cada indivíduo, em cada parte da técnica, em cada corpo, em cada espaço. Como dizíamos no início, as nossas preocupações eram bastante diferentes em 2010: entretanto, a necro/biopolítica e a sociedade de controlo, por exemplo, veem-se agora melhor do que nunca, e a análise tecnobiopolítica de Preciado (continuando Foucault e Derrida, principalmente) torna-se uma ferramenta essencial para nos ajudar a compreender as estirpes atuais da nossa húbris. Assim, o livro está longe de se centrar apenas nas questões de género. Pelo contrário, aborda a contemporaneidade numa multitude de temas, da crise da dívida grega ao neoliberalismo, do referendo pela independência da Catalunha ao capitalismo tecnopatriarcal, da questão dos refugiados à dependência tecnológica, do “amor no antropoceno” ao Candy Crush – sempre com uma particularidade que é inextricável da sua escrita e do seu pensamento: uma certa corporalidade, a sua relação com os espaços e com as pessoas que os habitam. Mesmo quando não tem “casa, nem qualquer propriedade, nem sequer cão”, percebe que lhe é dado “o maior dos privilégios: ser corpo e poder apaixonar-me de novo por uma cidade”.
Nascido em Burgos, em 1970, Paul B. Preciado vive atualmente em Paris e é filósofo residente no Centro Pompidou, mas viveu também em Atenas em anos de crise, esteve em Lesbos e pensou a Catalunha desde as ruas de Barcelona, por exemplo. Ainda assim, é quando está nos contextos mais íntimos – perante um apartamento vazio, uma separação dolorosa, um reencontro familiar – que chega, por vezes, às conclusões mais universais. Para ele, a filosofia tem de tornar-se “uma linguagem de ficção política que poderá permitir imaginar um mundo” e “atravessar as fronteiras: as que diferenciam os géneros filosóficos, as fronteiras epistemológicas entre as linguagens científicas e de ficção, as fronteiras de género, de idioma ou de nacionalidade, as que separam a humanidade e a animalidade, o vivo e o morto, as fronteiras entre o agora e a história”. Por isso, sonha com o seu apartamento em Urano, como Karl Heinrich Ulrichs, que em 1867 disse ser “uranista”, como todos aqueles que viveriam um “terceiro sexo”. A condição trans é, para Preciado, “uma nova forma de uranismo” e, por isso, proclama que, atingindo a velocidade de escape da órbita dos conceitos terrenos, é “a multiplicidade do cosmos encerrada num regime epistemológico e político binário a gritar à vossa frente. Sou um uranista nos confins do capitalismo tecnocientífico”.
Se há filósofos e livros que surgem antes (ou depois) do seu tempo, há outros que surgem mesmo a horas: publicado em espanhol e inglês em 2019, é um privilégio podermos ler Um Apartamento em Urano tão prontamente em português, cortesia da recém-chegada Bazarov, com tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Além de ser a obra mais acessível do autor, capaz de introduzir o leitor comum a estes temas, é um livro que se torna ainda mais urgente num mundo pós-pandemia. Como refere no prefácio a escritora e cineasta Virginie Despentes (companheira do autor até 2014), Preciado escreve “para um tempo que ainda não aconteceu” e avisa o leitor que “ao sair desta leitura saberá que […] há um lugar onde é possível ser completamente diferente daquilo que até agora lhe permitiram imaginar”. Paul B. Preciado dá-nos a chave para esse lugar, para esse seu apartamento que não precisa de endereço, onde já habita alguém inimaginável, um funâmbulo no gume da lâmina, pisando as fronteiras que outrora se achavam inabitáveis.