Ouço algumas vozes, num esforço otimista, tentarem encontrar um lado positivo no combate à pandemia que nos calhou em má sorte. Eu não creio que alguma coisa de bom nos tenha sido trazida por este maldito vírus. Temos, pelo menos, sido forçados a pensar sobre temas que antes preferíamos simplesmente ignorar.
Hoje, já não podemos fingir que não vemos os custos da suborçamentação dos sistemas nacionais de saúde, da ineficaz proteção social dos trabalhadores mais vulneráveis nas supply chains globais, da normalização do fosso da desigualdade de rendimentos ou até, num caso particularmente doloroso para os portugueses, da indiferença chocante com que a sociedade cuida dos seus idosos.
A crise pandémica não discrimina ninguém. Mas as respostas políticas que dermos podem fazê-lo.
O moderno Estado-providência, a União Europeia e as Nações Unidas foram respostas de grande amplitude e visão a crises terríveis.
Por entre os destroços económicos e sociais da pandemia, temos nas nossas mãos, como país e como espaço maior de civilização ocidental, a oportunidade e a responsabilidade históricas de não falhar perante o desafio.
Este tempo não nos trouxe nada de bom. Todavia, trouxe-nos a oportunidade única de construirmos algo melhor para as gerações do futuro. E de pensar. De parar para pensar.
Como se de um mandamento se tratasse, vivemos em modo hiperacelerado nas últimas décadas. Tudo teve de ser vivido rápida e intensamente. A velocidade, proporcionada pela conectividade exponencial, pelos smartphones e pela tecnologia de ponta, passou a fazer parte da nossa vida. Corrijo: passou a ser o nosso modo de vida. Um modo de vida profundamente egoísta e centrado na glorificação imediata. Sem tempo para o “nós”.
A pandemia obrigou o mundo a parar. E a conquistar a oportunidade de redescobrir que é possível viver a vida com maior sentido coletivo, com maior dedicação ao outro. Apesar do distanciamento social.
Outro dos mandamentos que ruíram foi o que, de alguma forma, postulava o princípio da prosperidade ilimitada. A expetativa, fundada no contrato social do pós-guerra, de que cada geração tem o direito legítimo de usufruir de mais prosperidade e bem-estar do que as gerações anteriores.
Isto, não tendo sido exatamente assim em todos os lugares ou para todas as pessoas, gerou pelo menos a perceção de igualdade de oportunidades no acesso à riqueza. De há algum tempo a esta parte que esta cláusula no centro do contrato social está em crise. A crise financeira de 2008 e as suas variantes europeias e nacionais infligiram um rombo nesta ideia que a pandemia vem agravar. Há mais gente a ser deixada para trás. Há mais desigualdade de rendimentos. Há menos liberdades. E, pela primeira vez na história, há uma geração inteira que vai viver com menos (direitos, liberdades e rendimentos) do que os seus pais e avós.
Se esta ideia é, como tendemos a concordar que seja, central para a estabilidade democrática, então renovar o contrato é uma urgência não só social e económica, mas também política.
Precisamos de um novo contrato social no pós-pandemia.
Um novo contrato social que encare as linhas de fratura há muito abertas nas nossas sociedades e que a pandemia veio agravar.
Um novo contrato social que coloque a pessoa no centro das instituições políticas e das empresas. A humanocracia no lugar da burocracia. Porque são as instituições que servem as pessoas e as empresas que servem a sociedade, não o inverso. Dizê-lo uma e outra vez, quantas vezes forem necessárias, é negar as desumanas demência socialista e petulância capitalista.
Um novo contrato social em que, de uma vez por todas, os serviços públicos sejam olhados como ativos e não como passivos; em que os mercados não sejam lugares selvagens e a expressão “responsabilidade social” seja mais do que uma vacuidade; em que as empresas compreendam que remunerar acionistas não pode ser a única razão da sua existência; em que as ameaças que há muito pendem sobre as nossas cabeças, como as alterações climáticas, não sejam ignoradas.
Um novo contrato social em que os Governos compreendam amplamente que é a iniciativa individual o motor da prosperidade e em que os indivíduos não percam de vista – como agora bem fomos relembrados – que a sociedade é um bem à guarda de todos.
Um novo pacto em que a carga fiscal terá, muito possivelmente, de incidir menos sobre o rendimento do trabalho e mais sobre a acumulação de capital se queremos dar sentido à palavra que mais estará presente nos textos políticos dos próximos tempos: redistribuição. A questão é: que tipo de redistribuição?
Quem tem uma visão social-democrata da sociedade priorizará a criação da prosperidade como pré-condição de políticas redistributivas. Outros, porventura mais próximos da linha do atual Governo e dos seus parceiros, ocupam-se menos com as condições de criação de prosperidade do país porque acreditam que o Estado é o princípio e o fim de todas as coisas. O que os leva, invariavelmente, a redistribuir tudo: a riqueza e a pobreza. Como a riqueza tem, por definição, uma existência menos duradoura, o resultado destas políticas é, normalmente, desagradável.
A crise provou, para o bem e para o mal, quão indispensável é o papel do Estado. Mas que Estado queremos para o futuro pós-pandémico? Que esforço estamos dispostos a fazer para o erguer?
Há muitas questões em aberto. E também algumas respostas certas: se compreendemos bem as causas dos nossos problemas (presentes e passados), se nos mentalizámos da fragilidade comum da nossa humanidade, se prezamos os valores da justiça, da liberdade e da igualdade, então só há um caminho.
O de um novo contrato social, duradouro e abrangente, que envolva Governos e autarquias, cidadãos e empresas, setor social e universidades.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira