Ruth Monteiro. “São gente ligada ao tráfico de droga e ao terrorismo, foram eles que tomaram  de assalto o poder”

Ruth Monteiro. “São gente ligada ao tráfico de droga e ao terrorismo, foram eles que tomaram de assalto o poder”


A ex-ministra da Justiça guineense pediu auxílio a Portugal após o golpe de Estado, explicando que tinha a vida em risco por saber demais.


Num restaurante do Bairro Alto, por entre olhares preocupados, sempre atenta a quem entrava e falando num tom baixo, Ruth Monteiro, ministra da Justiça da Guiné-Bissau até fevereiro deste ano, desenrolou a teia de intrigas que derrubou o seu Governo. Ficou no poder o Presidente Umaro Sissoco Embaló, declarado vencedor de umas eleições de legalidade questionada, de onde saiu derrotado o candidato do PAIGC, Domingos Simões Pereira.

A ex-ministra pinta o retrato de um país mergulhado num clima de terror, governado por uma elite política, indistinguível do submundo do crime, que tomou o poder pelas armas e é financiada pelo fluxo de cocaína da América Latina, que passa pela Guiné-Bissau até às mãos dos jiadistas que navegam as areias do Sahel. Conta histórias de altos funcionários do Ministério Público que tentam impedir a revista de camiões de carapaus com quase duas toneladas de cocaína lá dentro, de homens misteriosos que estavam dentro dos veículos e não são acusados de nada. Em março, perseguida e acusada de não devolver três carros do seu ministério, algo que nega, Ruth Monteiro chegou ao ponto de pedir ajuda ao Governo português, explicando que a sua vida estava em risco por saber demais. Conseguiu escapar, depois de muitas peripécias, com ajuda clandestina de elementos das forças de segurança guineenses.

O drama marcou-a profundamente. Nascida e criada na Guiné-Bissau, Ruth Monteiro veio para Portugal estudar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e ficou por cá a trabalhar. Décadas depois foi passar umas férias a Bissau e por lá ficou. “Hesitei bastante”, confessa. “Mas fiquei apaixonada de novo pela minha cidade. Redescobri-me, entrei em casa da minha mãe e era como se não tivesse estado longe todos esses anos”. O seu trajeto profissional, como advogada e assessora do Ministério da Justiça, bem como a militância num pequeno partido sem representação parlamentar, o Movimento Patriótico, desembocou num convite para integrar o Governo de Aristides Gomes, do PAIGC. “Agora quero voltar a ser advogada e não me querem deixar”, diz, entre gargalhadas que soam a tristeza. “No fundo, é a única coisa que sei fazer”.

Costuma dizer-se que a História é escrita pelos vencedores. Com Nuno Nabian a conseguir formar Governo e a aprovar o seu programa, com a CEDEAO a reconhecer a Presidência de Umaro Sissoco Embaló, teme que o mundo esqueça aquilo que se passou e a maneira como chegaram ao poder?

Deixe-me dizer-lhe que o Nuno Nabian não conseguiu nenhuma vitória no Parlamento. Nós não estamos a falar de vitórias conseguidas de forma democrática. Estamos a falar de vitórias com base nas ameaças, com base numa violência que vem do submundo do crime. Estamos a lidar com gente ligada ao tráfico de droga e ao terrorismo, foram eles que tomaram de assalto o poder e estão a ditar as leis. Veja que Sissoco disse agora que não irá cumprir com as declarações do Conselho de Segurança da ONU, que determinam que o Governo deve ser eleito com base naquilo que foram as eleições legislativas, livres e justas, de 2019. Ele diz “eu não o vou fazer”, desafia qualquer autoridade e, ao que parece, vai conseguindo impor as suas decisões.

Mas como surge então a aprovação do programa e Governo de Nuno Nabian?

Primeiro, o presidente da Assembleia Nacional Popular [Cipriano Cassamá] é ameaçado. O próprio faz uma conferência de imprensa e diz que ele e a família estão a ser ameaçados e que não vai enfrentar quem faz um golpe de Estado com uso da força dos militares. A ANP foi cercada mais do que uma vez, de cada vez que se previam decisões do hemiciclo que não fossem de acordo com os interesses de Embaló e da sua entourage. Temos uma sessão que é convocada e realizada com todo o tipo de ilegalidades que se podem imaginar – a começar pela mesa da Assembleia, que deve refletir a proporcionalidade dos deputados, o que não aconteceu. Tinha o grupo que se juntou a Embaló, o PRS [Partido para a Renovação Social] e o Madem-G15, que apoia o Embaló. É o primeiro ato absolutamente ilegal, que viola tudo quanto é legislação guineense, e eles conseguem realizar. A isto chama-se vitória? Não, terá outros nomes. Depois há a contagem dos deputados presentes, para se determinar o quórum, que é feita com deputados que ainda não o são – só depois de aberta a Assembleia vão tomar posse. Temos membros do Governo que, não tendo pedido a sua substituição, agiam como membros do Governo do Nuno Nabian, são demitidos à noite para no dia seguinte aparecerem como deputados: uma figura clássica de abuso do direito, a não comunicação de um impedimento, para dizerem que ainda são deputados. Não temos uma maioria, é um arranjo de pessoas que assaltaram o poder e querem dar-lhe vestes democráticas para o impor à comunidade internacional. E isso é algo que a comunidade internacional está a ter dificuldade em resolver, a questão do assalto ao poder pela via armada: não há ninguém que não saiba como se consegue esta aparente e fictícia maioria parlamentar. 

Apesar de haver deputados da APU-PDGB que se recusaram a apoiar Embaló, tendo inclusive um deles sido raptado, também houve cinco deputados do PAIGC que, depois disso, acabaram por apoiar o Governo de Nuno Nabian.

Esses deputados foram guardados por militares, não sabemos como se conseguiu o voto deles. O que sabemos, e é público, é eles dizerem “nós temos medo de ir à sede do PAIGC” e depois terem as casas guardadas por militares. As pessoas têm famílias e já sabem qual é o nível de violência a que este Governo e este Presidente estão dispostos a chegar para se manterem no poder. Um deputado [Marciano Indi], líder da sua bancada parlamentar, é raptado e agredido em plena luz do dia, o próprio presidente da Assembleia Nacional não diz uma palavra em defesa do deputado. A que nível de violência é que se pode chegar? Quando eu estive escondida durante dois meses, era a esse nível de violência que me tinham dito que eles poderiam chegar para calar as pessoas.

Na altura foi divulgado um email seu em que dizia ter sido informada por agentes das secretas e da segurança do Estado quanto a ameaças à sua integridade física. Poderia explicar-nos melhor o que se passou, o que lhe foi transmitido?

Não posso revelar as fontes porque poria em risco as pessoas que me tentaram proteger. O que me foi dito, e não só pelas secretas, mas também por outros elementos de segurança presentes na Guiné, é que a questão da droga e os conhecimentos que eu posso ter do dossiê da droga eram motivos importantes para quererem a minha não saída da Guiné. Veja bem, o ministro do Interior tem uma pasta muito mais sensível que a Justiça. Ele [Juliano Fernandes] saiu e entrou várias vezes da Guiné, e eu não podia sair. Mas o ministro do Interior foi amedrontado, sequestrado e levado para o seu ministério para ser ouvido quando se pretendia intimidar os deputados do seu partido, que são do partido do Nuno Nabian, para que não se ausentassem do Parlamento no dia da votação do programa. 

Agora que não está na Guiné-Bissau, este dossiê da droga de que fala, que diz ser o centro da trama, do que se trata em concreto? Quem é que implica? Militares, agentes das forças de segurança, elites de partidos guineenses?

Há um relatório muito recente – não foi feito por mim, não participei minimamente – apresentado às Nações Unidas em que o que se diz é exatamente a situação da Guiné. Nós temos instituições do Estado envolvidas no tráfico de droga. E o tráfico de droga está a financiar o terrorismo. Temos um Ministério Público completamente corrompido e incapaz de se afastar dos laços em que se envolveu. Quando foi a maior apreensão de droga na Guiné-Bissau, as pessoas que mais impediram a realização do trabalho da Polícia Judiciária foram os agentes do Ministério Público – algo que foi publicamente denunciado por mim, por ser ministra da pasta.

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