Manifestações são “problema de saúde pública” mas não há lei que as impeça

Manifestações são “problema de saúde pública” mas não há lei que as impeça


Constitucionalista questiona ao i as punições anunciadas pelo Governo. Especialistas reafirmam que manifs como a do Chega ou o 1.º de Maio são problema de saúde pública.


As manifestações, tal como aquelas que vão acontecer no próximo fim de semana, são um problema de saúde pública. Os especialistas não têm dúvidas. “Há aqui riscos. São grandes concentrações de pessoas que têm de ser avaliadas e, depois, também os contextos em que acontecem. Sabemos que um maior ajuntamento de pessoas pode proporcionar uma maior disseminação da doença”, revelou ao i o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia.

Mas se do lado da saúde não há hesitações sobre o que deve e não deve ser feito para conter a propagação da covid-19, no que toca à interpretação da lei, as coisas não são assim tão claras. Existe uma proibição de ajuntamentos anunciada pelo Governo, mas não existe qualquer lei que impeça a realização de manifestações ou qualquer enquadramento que possa pôr em causa as liberdades democráticas. Nesse sentido, a posição do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do Executivo liderado por António Costa – que anunciaram possíveis medidas punitivas para casos de grandes aglomerados de pessoas – é questionada por constitucionalistas. Ao i, Jorge Bacelar Gouveia admitiu que, em termos de legislação, “não é possível punir” sem se retirar o direito à liberdade que cada um tem.

E os dias que se aproximam terão pouco condicionamento de grandes multidões, mantendo-se o que já havia acontecido no 1.o de Maio e na manifestação antirracismo. A Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), por exemplo, manteve greves e manifestações na região de Lisboa (que terminam sexta-feira), e também o líder do partido Chega, André Ventura, não desistiu de levar avante um protesto na capital, no sábado, 27 de junho, para demonstrar que Portugal “não é racista”.

Jorge Bacelar Gouveia explicou ontem ao i que, uma vez que já não nos encontramos num estado de emergência devido à covid-19, os direitos de as pessoas se manifestarem já não estão suspensos. “Nós, neste momento, já não estamos em estado de emergência. Lembro-me de que, nessa altura, os direitos foram suspensos, mas agora não estamos. Os direitos são plenos. No entanto, é verdade que estamos na situação epidemiológica que nós conhecemos”, disse, adiantando: “O problema é que, neste momento, não há instrumentos legais para suspender direitos, liberdades e garantias, porque isso só pode ser feito no âmbito de um estado de emergência”. E explicou também que nem a lei “muitas vezes esquecida” da liberdade de manifestação e de reunião, de 1974, permite qualquer tipo de restrição na realização de protestos nas ruas.

“Não há nenhum instrumento legal para restringir protestos ao ar livre. Mas acho que os manifestantes devem ter alguma cautela. No fundo, nós continuamos a viver numa situação de emergência sanitária sem que o Parlamento tivesse feito o seu dito trabalho, que era alterar a legislação para acomodar situações que não são carne nem peixe. E não o fez. Mas, à partida, vejo sempre com muito maus olhos que se introduzam quaisquer tipos de restrições ao exercício da liberdade de manifestação. Porque ninguém obriga os manifestantes a irem para lá. E também não vão estar lado a lado com uma pessoa que esteja lá forçada”, sublinhou Jorge Bacelar Gouveia.

protestos ao ar livre As ações e manifestações que se aproximam não vão realizar-se em espaços fechados, o que se traduz num risco menor de propagação da covid-19. “É bom termos a noção de que é uma situação de menor risco do que um espetáculo cultural num espaço fechado. Mas é evidente que, apesar disto tudo, há sempre os comportamentos das pessoas, que não se controlam por lei. Existe sempre risco mas, atualmente, não há muita gente disponível para ir a manifestações. Ainda assim, serem ao ar livre é essencial. Já houve outras manifestações ao ar livre, como no 1.o de Maio, e penso que não terá havido problemas”, salientou ao i o delegado de Saúde Regional de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval. E Ricardo Mexia acrescentou: “As manifestações são grandes concentrações de pessoas. Por outro lado, temos salas de espetáculo a funcionar. É certo que têm regras diferentes das concentrações no exterior e também riscos diferentes mas, ainda assim, temos de ser proporcionais”, ressalvou, dizendo ainda não entender o destaque dado às manifestações do próximo fim de semana quando já aconteceram, recentemente, protestos idênticos, como os do 1.o de Maio. “Tenho dificuldade em perceber porque é que agora é um problema e, quando foi o 1.o de Maio e outras manifestações, as pessoas não valorizaram isso”, atirou, ainda que, na altura, todas essas ações tenham sido alvo de diversas notícias.

Marcelo Rebelo de Sousa, questionado ontem sobre estas ações e manifestações da CGTP e do partido Chega, disse que “há normas de saúde pública e autoridades sanitárias”: “Em relação ao exercício do direito de reunião e de manifestação, em espaço fechado ou aberto, há regras a respeitar, definidas pelas autoridades sanitárias”.