A nossa vida segue o seu curso sob uma praga de anacronismos, diz-nos Hans Magnus Enzensberger. Mas e o que significa isto? São essas coisas que fazemos ou que persistem para lá da sua época, coisas que tiveram o seu tempo e viram-no esgotar-se para, num certo alheamento, e com o “seu recuado esmero”, continuarem por aí, existindo hoje desafinadas, fora de harmonia face ao presente. Para o ensaísta alemão, não restam dúvidas de que, entre as manifestações mais surpreendentes deste género estão a escrita e a leitura de poemas, e, por conseguinte, qualquer análise dessas ocupações.
Mas Enzensberger adianta que isto não chega para que as faces corem de vergonha, uma vez que, com o regime dos valores e das virtudes que predominam na nossa sociedade, “ao fim e ao cabo a maioria das nossas ocupações são definidas por alguma forma de anacronismo, e o que se pode é perguntar se não seria preferível o suicídio a ter de observar de forma absoluta e radical a nossa forma actual de vida”. Muitas vezes, o impulso poético surge até dessa outra pergunta que faz Eduarda Chiote em Fiat Lux: “Como cheguei aqui?” E logo, uns versos depois: “’farto de psicologias’ – insistes: quero factos. (…) Dá-me, pois, e na rejeição de discursos confortáveis/ o que há sempre no tempo que os domina/ e des/oculta-me uma alma des/entendida dos sentidos, mas capaz/ de encontrar, e no seu laço forte, o que espera a vida inteira ser tecido/ por um texto prisioneiro ‘do juízo do tempo/ por um fio’ e não o chores se este te mudar o sentido do destino da sorte”. Já iremos falar sobre o registo densíssimo dessa forma de rasgar a camisa-de-forças prosódica, num verso que se desenraíza atrás do pensamento, porque ao espírito não lhe basta o vício, palavras arrumando um termo, mas há esse desejo de “chegar ao mundo além do seu limite”. Ana Hatherly referiu-se certa vez à forma como esta autora, que não nos dá nunca repouso, como alguém que representa uma “vivência de que é destacada a explosividade convulsiva que se transforma em relato”. Tal como se sente algumas vezes uma vontade brusca de escrever, uma compulsão, a escrita e a leitura de poesia persistem como ocupações são como gestos de persignação, e, como nos diz Joseph Brodsky, “em certos períodos da história só a poesia se mostra capaz de lidar com a realidade condensando-a de tal forma que dela possa chegar-se a um contorno, algo que, de outra forma, a mente não conseguiria apreender.”
Poucos duvidarão que este é um desses períodos, e Brodsky também alerta que o principal elemento pelo qual a História se manifesta é pela vulgaridade, e por esse acordo em que o Estado e as instituições funcionam como os seus agentes imediatos, e que tão cedo quanto começa a ser gizado já nos puxa para si, e logo vemo-nos forçados a cumpri-lo, ‘como se’ partilhássemos também nós do seu juízo. Na verdade, não importa o que concluímos, pois é-se arrastado, e é precisamente esta fragilidade de tudo o que tão estupidamente se nos impõem o que confere um aspecto trágico ao nosso tempo. Nunca tantos estiveram a par, e em cima do acontecimento, testemunhando o ambiente burlesco e caótico em que são tomadas as decisões mais importantes, as mais severas. Nunca tantos viram o poder exposto na sua permanente ansiedade, desde logo, pelo esforço, tantas vezes inútil, de fingir que a situação está sob controlo. E o pior é a consciência de, face a isto, só nos resta a razão que se tem ao ficar calado, porque envolver-se ou protestar ainda é uma forma de se comprometer com o resultado.
Hatherly concluía a sua breve nota crítica sobre o livro “A Décima Terceira Ilha” (1983) descrevendo-o como um texto violento “porque nele a vida pouco colhe do sonho”. E acrescentava: “A sua violência encontra-se na subjacente aspiração ao real verdadeiro, a esse mito: ‘As crianças não escolhem, dizem tudo.’” Na escrita de Eduarda Chiote, poeta nascida em Bragança há 90 anos, há uma oscilação poderosa que já João Rui de Sousa havia notado, em 1984, “entre a grande caçada às minudências fulgurantes, aos ‘íntimos aromas’, aos densos rumores breves, e as ampliadas apoteoses de um caos que ‘é final e começo de dilúvio’, a junção de uma confusão plena, a possibilidade de estarmos, pela primeira e talvez pela última vez, ‘no limiar do encontro’ (as citações são feitas a partir do título “Altas Voam Pombas, ed. &etc, 1983). Como se vê, esta é uma margem muitíssimo invulgar de concepção do campo poético, em que Chiote está isolada no panorama das nossas letras, só encontrando um eventual parceiro num poeta como John Ashbery que a meio de um dos seus longuíssimos poemas podia coser todas as impressões que afligem um pensamento exaltado, ao mesmo tempo fugindo e perseguindo algo, ao mesmo tempo flecha e corço, pedindo desculpa pelo ponto de cruz de frivolidade no tecido da eternidade. O mesmo poeta que fala da sensação de se passear pairando sobre as ruas da cidade, como uma espécie de paz que se atinge se não a ferirmos perdendo a paciência. E em “Fiat Lux”, um poema muito longo dividido em 36 partes, e que data de 2013, embora tenha esperado quatro anos para ser publicado em volume, com selo das Edições Afrontamento, numa das partes, fala-nos da sensação se tombar “sob os lençóis muito, muito, muito doentes”, de tal modo “que lhe bastara fechar os/ olhos/ para sentir a insónia embalsamada”, fala-nos de uma exaustão “que se lhe havia desprendido dos sapatos: estes, mal afloravam/ o chão, e descreve-nos a doença como se “fosse, dos Universos, enfim, por fim, a sua mais difícil perfeição”. Estamos num território em que a poesia é um balanço ao mesmo tempo precário e ousado, que singra pelo desconfinamento, um excesso bem medido, um embale que parece vir, como já alguém notou, “do começo do mundo ou do lugar onde a vida e a morte começam e recomeçam”. Podíamos cruzar os seus versos com tantos de Ashbery, num diálogo desabrido e em busca de algum destempero mas também dessa razão que respira e se faz ouvir, numa espécie de pânico controlado à entrada da terceira década de um século que parece apostado em aumentar a parada com cada susto até nos pôr sóbrios de vez ao fim de séculos de dissipação. E o efeito parece ser esse descrito por Ashbery, dizendo que todas as pessoas que conhecemos e as canções que cantámos estão do nosso lado, a afundar-se imperceptivelmente connosco na velha despensa da História. E isto também nos diz muito da utilidade destas ocupações anacrónicas, especialmente em momentos de tão profunda incerteza, esses em que o espaço vazio “pode servir para reinstalar alguma coisa que a História enfiara já no quarto de arrumos”.
“Nenhuma repetição é igual”, diz-nos Chiote na 33ª parte do seu poema, e então, na grande escala que concebe para arrancar-nos à medida mesquinha, à mosquinha azucrinante com que estes dias nos viram, com ajuda do medo, para dentro, para perplexidades e inquietações sem fôlego, questiona-se: “então, qual o enigma biológico,/ teológico, político de um mesmo problema repetido e repetido/ e repetido?/ Seu valor na religião, na arte, no sistema,/ se com ele construímos a inércia obstinada de um imaginarmo-nos seguros/ e sem nos criarmos problemas, quando, em verdade, em verdade,/ não há, nos problemas, problema algum (…) mas, repara, a solução para o problema da tristeza/ destes tristes tempos, tempos tristes, não tem, acredita, importância nenhuma;/ pelo que te rogo a intolerância e a dissidência e mesmo a ruptura/ com uma transcendência que se não liberta do que há muito/ perdeu o sentido.”
Este é um poema que em vários momentos nos interpela de forma insistente, sagaz, muitíssimo profunda. É um texto com a perícia de um poema e a força indagadora de um ensaio. E num momento em que ficou fácil abstrairmo-nos de tudo, desfiar um rosário de infinitas desculpas, apontar o dedo ao vazio da crítica literária nas páginas dos jornais ou seja onde for, antes disso, talvez fosse útil perceber se os que se queixam, e os que não se queixam mas aquiescem, não começam por ser responsáveis antes de tudo por nem lerem, nem se interessarem, mas que, à primeira oportunidade, agarram na lata de spray e escrevem em garrafais letras que tudo o que hoje se faz não serve, não presta, não merece a leitura. E porquê? Talvez porque têm de justificar essa guerra interior de que nada parece sair vivo. Ora, neste livro, Andreia C. Faria, poeta e leitora que para ele insistentemente nos chamou a atenção, diz ter encontrado “uma meditação ao pé da morte, da velhice, do desejo, do estertor de uma sexualidade viva”. Nele encontrou uma outra ‘morte sem mestre’, pelo “despojamento e por esse fôlego de quem fala a sua derradeira verdade – versos crus, sem retórica, mas que não deixam de cantar, e de interpelar o outro”. Identifica aqui uma “lucidez como algo que exsuda da velhice e entra nos versos de respiração longa, com um pendor filosófico, mas não conceptual (ela sabe que o poema pode ser uma meditação, mas não se faz de ideias)”. Este livro, acrescenta Andreia C. Faria, “tem a vertigem de alguém que fala a partir do fim, que fala ‘por um Deus chegado à terra/ demasiado tarde’ e tem em si ‘o sentido de um poema lembrado ao contrário’”.
São inúmeros os momentos em que “Fiat Lux” parece reconhecer e – através de uma linguagem que alude e sugere de forma preclara expressões que por estes dias se impuseram como gânglios nervosos no nosso vocabulário – confrontar este momento histórico, como se o tivesse pressentido, ou desenhado o enlace que estava prestes a desencadear-se, como se o pensamento chegasse a um ponto em que reconhece, pelo menos, essa forma de agonia que hoje se nos impõe como um destino comum. “Ah! a excitação dos vírus/ nas raízes podres de uma literatura/ que deseja desfrutar um outro, porventura fresco mundo,/ com a obscenidade de um usufruí-lo sem pensar comprá-lo”, lê-se na página 20. E na página 26: “ou uma mosca maluca poisada/ toda a noite dentro do oco do crânio (…) assim, e no universo poderoso da palavra,/ a partícula de horror que irradia da sua natureza (…) A propósito de tudo/ ou de nada, uma mosca, uma onda, uma catástrofe,/ uma guerra, uma violação, um grão de pó”. E na página seguinte: “Pois. Prisioneiros de um tempo/motivo/ indecifrável e de um luto de lucidez nem sequer resolvido/ quanto mais redimido, caber-nos-á perdoarmo-nos? – Dilema em aberto/ este não saber em que se sabe demasiado, uma vez sermos todos/ potencialmente portadores – na vida como na arte – dos vírus vingativos/ que se diluem e esbatem a ponto de não conseguirmos/ sequer identificá-los face a uma demência, diria inconsciência/ universal: pelo que nos cabe também interrogarmo-nos/ sobre ‘se morremos quando queremos’/ ou quando fascinados por um ‘olhar que, abolindo o sujeito,/ acaba por aniquilá-lo.”
O poema é atravessado “por frases lidas ou escutadas na forma em que ficaram na memória da Autora”, diz-nos uma nota final. Uma dessas frases fala-nos das “criaturas rasas que frequentam as sobras”, e talvez seja esta a condição que partilhamos nesta inércia que ainda se defende, que ainda sente o peso de uma culpa e a distribui à sua volta. Há uma obstinação doentia naqueles que, encarando a sua época, agem como autores póstumos a ela, criam as suas ficções de posteridade e, normalmente, arreliam-se sempre que algo de novo, porventura um mundo fresco, ameaça despontar. Daí que os diagnósticos mais negros se vão sobrepondo e revalidando, e, no entanto, o sol renasce e o coração não morre por mais enterros que se lhe faça.
A par da “linguagem terminal”, em que o vírus é uma constante, Andreia C. Faria chama a atenção para expressões como “pus, sífilis, cruéis assassinatos”, que trazem “o cheiro da morte” e um “nazismo estilizado”, uma linguagem que aparece em tempos de “dissolução de bem e de mal”, compondo um gesto compassivo e decriador, como se fosse a história do humano que findasse com o corpo que escreve o seu fim. E se a linguagem nos surge seca, roçando a prosa, é, diz-nos Faria, ao mesmo tempo luxuriante, indo “beber a um leite bíblico (desdo o título à evocação de Santos, de Jesus Cristo, de um Ele, de um Eleito, e de uma imagética amorosa que remete para o ‘Cântico dos Cânticos’”.
O corpo, na sua carnal evidência, deixa um rasto, enreda “na transparência/ imperdoável dos cheiros da pele”, e mesmo a morte não corta “um fio de amor – extremo!, o corpo repete-se, está nas “asas dos insectos/ e do ar e da água: após teres tomado a habitual injecção de morfina:/ e eu não ouso invocar-lhe a humildade,/ a mansidão da paixão, a perfumada palidez dos cabelos,/ mas, sacra, celebrá-la apenas: gasta obedecendo à total perda/ dos cheiros dos teus (e nossos) medos”. E se este é um tempo que julga apoderar-se da morte, como facto e como tema, poesia e vida são quase sinónimos na sua positiva vaguidão. Assim, uma e a outra reanimam-se, “convertendo a péssima sáude que (lhes) têm permitido viver/ assustadoramente,/ em coisas limpas. Assim, anacrónica poesia, a que tantas vezes ouviu as premonições do seu fim, se habituou a ser tido como um des/valor, desejo nulo e em breve antepassada, continua a estender “para a escrita/ a mão sobrevivente” E do uso das chamas apagadas, da “marca das cinzas/ onde se diluem/ desmanteladas mas nem por isso menos claras/ estrofes”, há ecos capazes de nos tornar, por momentos que seja, espantosos leitores, menos cínicos por momentos, tocados pela sua “estranha sapiência”. Assim, e face à pandemia, que não se sabe como irá acabar, nem que mundo ou que cinzas nos deixará, que curioso é ler um livro imenso que passou despercebido a um tempo cuja maior astúcia é a forma como pratica o desdém, como esquece tudo o que denuncia a sua mediocridade. Vale a pena, então, ler alto nesses antros escuros, a essa espessa escuridão, estas palavras escritas “sob o sal da saliva”, avisando-nos para “um espantoso prazer destrutivo, infectado de vírus,/ poderá tornar-se à escala planetária, no desamor e expectativas goradas/ que tanto nos podem levar à criatividade quanto/ ao suicídio (…)” Talvez só um poderoso anacronismo como este possa servir de antídoto para a venenosa vulgaridade com que o presente nos atinge como uma “obstinada pressão de culpa que nos terá anulado e por uma espécie de remorso/ incapaz de discernir de um caminho de libertação, a nossa, porventura,/ inventada ainda, liberdade”.