Não são apenas críticas ao fim de um programa de investigação, a equipa de jornalistas coordenada por Ana Leal acusa a direção de informação da TVI, liderada por Sérgio Figueiredo, de censurar peças jornalísticas incómodas para o poder político e para as autoridades de saúde. O programa foi suspenso no dia 10 de março e a equipa, constituída pela jornalista e outros três repórteres, foi dissolvida 16 dias depois. Ao Conselho de Deontologia do Sindicato dos Jornalistas e mais tarde ao conselho de redação da TVI foram mesmo detalhadas por estes jornalistas diversas investigações que a direção de informação de Queluz de Baixo terá travado (ver caixas ao lado). A maioria está relacionada com a covid-19, mas há ainda a descrição de uma investigação que envolvia o atual Governo angolano que nunca viu a luz do dia.
Questionada ontem pelo i, Ana Leal disse não comentar o fim do programa nem os motivos, tal como Sérgio Figueiredo. “Não fiz nem faço declarações sobre decisões editoriais”, disse por mensagem escrita o diretor de informação da TVI.
Na documentação a que o i teve acesso, é possível verificar que Ana Leal juntou aos esclarecimentos enviados ao conselho de redação uma troca de mensagens com Sérgio Figueiredo no grupo de Whatsapp da equipa. “A Ckaudia [referência à jornalista Cláudia Rosenbusch] está a preparar uma reportagem que será exibida amanhã porque ainda está a ser filmada”, escreveu Ana Leal a 17 de março, tendo recebido 20 minutos depois uma resposta de Figueiredo, com a posição deste. E não era só em relação ao trabalho referido. Era a descrição de uma postura que achava que deveria nortear os jornalistas em tempo de pandemia. “Ana quem decide se é exibida amanhã ou não será a Direção de Informação. Aproveito para dizer a todos o que hoje de manhã já escrevi a Ana. Jornalismo é informar, mas é sobretudo ter a noção do papel que desempenha na sociedade. Por isso também é filtrar, ter a noção do tempo e do modo como o nosso trabalho impacts na vida dos outros. enquanto os incêndios nao se apagam, não é hora de questionar os bombeiros”, escreveu Sérgio Figueiredo, acrescentando: “Não ignoramos as falhas, mas estar a insistir nelas, estar sobretudo preocupado em denunciar o que não funciona, assusta as pessoas e afasta-as da antena, provoca rejeição. As televisões têm agora a preocupação de informar, de esclarecer, de ser pedagógicos, de perceber que as pessoas precisam sobretudo tranquilizar-se e confiar. Não basta termos a nossa verdade, as nossas certezas, se isso fragiliza ainda mais uma sociedade já frágil e desorientada perante o desconhecido”.
A terminar, dizia que as investigações teriam o seu espaço no pós pandemia: “Quando ela [a pandemia] acabar, quando ela for vencida, então voltamos a questionar, a denunciar, a por em causa. Como sempre temos feito, como esta equipa tem feito, com o aval e o comprometimento pessoal deste diretor que vos admira e da o corpo as balas para que nenhuma pressão nenhum interesse vos trave”.
Mas aquilo que na mensagem parecia um ‘até já’ acabaria por se transformar na concretização do fim desta equipa, antecipado, aliás, em fevereiro numa entrevista que Ana Leal dera ao semanário SOL (ver imagem em cima) – segundo o relato dos jornalistas, a 26 de março dois elementos da equipa foram chamados pelo diretor, sendo informados de que a equipa seria dissolvida e teriam de voltar à redação. “A ideia foi transmitida como definitiva” e não como transitória, afirmam.
“O jornalismo não está de quarentena”
Ao conselho de redação, além dos esclarecimentos anteriormente enviados para o Sindicato dos Jornalistas, os repórteres mostraram-se estupefactos com a posição adotada por Sérgio Figueiredo em tempos particularmente difíceis como os que vivemos. Tempos que precisam de escrutínio, sublinham.
“A equipa de jornalistas que compunha o ‘Programa Ana Leal’ entende que o jornalismo em tempos de pandemia tem, efetivamente, um papel crucial em termos pedagógicos, mas não pode, de forma alguma, limitar-se a isso. O Jornalismo não está de quarentena. Vale a pena exemplificar com as situações com que fomos confrontados. Ao longo destas semanas, fomos recebendo centenas de e-mails a denunciarem casos de incumprimento das normas de higiene e segurança anti-covid-19, incluindo nos locais de trabalho”, afirmam, questionando: “De que serve a estas pessoas aprenderem pelos media quais as medidas de segurança e higiene a observar, se depois, na altura de denunciarem os casos de incumprimento, lhes virarmos as costas com o argumento de que não é hora de questionar?”
“É com esse sentimento de liberdade que o grupo de jornalistas que compunha o ‘Programa Ana Leal’ considera absolutamente inaceitável que o diretor de informação nos diga como já disse para ficarmos quietos. Não. Não podemos. É o próprio Estatuto dos Jornalistas que nos veda tal comportamento”.
Quanto aos esclarecimentos enviados ao conselho de deontologia do sindicato, esses não continham a troca de mensagens com Sérgio Figueiredo no Whatsapp, mas já faziam referência à posição do diretor de informação perante diversos casos investigados: “A ordem por parte do Diretor de Informação era clara: Não é a hora de apontar o dedo.”
O i contactou ontem o Sindicato dos Jornalistas, que reencaminhou o caso para o conselho de deontologia, que só hoje conseguirá reagir. Recorde-se que a 9 de abril, ainda sem todos os dados a que o conselho de redação teve acesso (como a troca de mensagens por Whatsapp), o conselho de deontologia concordou com o facto de o jornalismo não poder estar de quarentena, ainda que reconhecesse “que circunstâncias especiais (nomeadamente o facto de as redações estarem com muito mais trabalho, em condições mais difíceis, e menos profissionais) podem justificar decisões especiais – como a suspensão dos referidos programas de investigação”. A conclusão na altura era, porém, clara: “O CDSJ, em face das respostas enviadas pelo diretor de Informação da TVI, acredita que o jornalismo de investigação voltará à primeira linha das prioridades da TVI, mal estejam reunidas as condições para tal”. O i também questionou ontem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que não enviou qualquer resposta até à hora de fecho desta edição.