Jerry Stiller. O comediante que da ira fez  o seu tónico

Jerry Stiller. O comediante que da ira fez o seu tónico


Pai de Ben Stiller, o homem que emprestou o corpo ao mais longo ataque de nervos da história da comédia, morreu aos 92 anos, descontraído da vida. Ou seja: de causas naturais.


Quem sabe, feitas as contas, que traços se impregnam mais fundo na memória? Que grandes fitas fazem uns, que virtudes desgastantes exibem outros, mas depois a nossa lembrança, sempre uma fedelha caprichosa, acha graça a um badameco, e nem olha para o herói em que a câmara sempre se fixava. Há ali um tipo, meia-leca, esgrouviado, de ar danado, esse personagem secundaríssimo, que serviria só para rematar uma cena ou outra com um ponto de exclamação, ainda vai sobraçar o espetáculo. Jerry Stiller representava os seus papéis com um destempero próprio de um ator repescado, um desses artistas que terá lavado as escadas da desilusão, as quais, em Hollywood, sobem e descem muitíssimos pisos, e de tanto respirar o desinfetante, é natural que este lhe tenha fritado a molécula. Pelo menos, era o que parecia. O comediante tinha uma subtileza que não era logo aparente. Uma vez disse que o trabalho de cómico é um pouco “como plantar gerânios num campo de minas”. No papel que decididamente o imortalizou, enquanto Frank, o pai de George Costanza na série “Seinfeld”, Stiller era a personificação do “cota” hipertenso que negociou com a morte um prolongamento das prestações sobre o ataque cardíaco, indo-se desfazendo em espasmos, de uma irritação para a outra, como quem faz a pega de uma besta que saiu esparvoada do curro e se meteu pela manga do forcado! E uma coisa dessas como é que se explica. O melhor é não se preocupar com isso. “Nunca te apresses a chegar à punchline. Pode ser que dês por alguma coisa com mais piada pelo caminho.” Esta era outra das lições deste comediante que morreu ontem, de causas naturais, aos 92 anos.

Foi o filho, Ben, quem deu a notícia através de uma publicação perfeitamente cinzelada no Twitter: “Ele era um grande pai e avô, e foi o mais dedicado dos maridos para Anne durante 62 anos. Vamos sentir muito a sua falta. Adoro-te, pai.” A Anne era a mãe de Ben e Amy Stiller, Anne Meara, que morreu em 2015, e com quem Jerry formou uma dupla que atuava em clubes de comédia, em Las Vegas sobretudo, e em programas de variedades na televisão, tendo alcançado bastante popularidade a partir dos anos 60. Era uma rotina dessas que estende a briga doméstica a uma proeza em que o humor arredonda os dissabores de uma vida de casal, evitando que a loiça saia a voar, acha-se um ritmo para fazer girar os pratos, e dá para se alargar muito no material, muito para lá das enjoativas voltas a que a paixão normalmente fica confinada. Era como Mary Elizabeth Doyle e Hershey Horowitz que os dois apareciam como quem sai da cozinha com um empadão meio queimado e que envolve depressa ao auditório, enquanto os dois alargam a zaragata nesse animado embate de culturas, aproveitando-se da herança dela como católica de origem irlandesa e a dele como judeu.

De resto, Jerry atribuía às desavenças entre o pai e a mãe, quando era pequeno, uma certa urgência que marca a sua carreira de cómico. “Dei-me conta de que se os conseguisse fazer rir, nem que fosse por um bocado, eles deixavam de peguilhar. Acabei por roubar-lhes todo o seu material.” No avesso da angústia daquele miúdo que faz de tudo por negociar umas tréguas entre os pais, Stiller saiu com um rosário de piadas dessas que dão choque, e tornou-se um mestre nessa arte que, hoje, tem tantos praticantes inábeis: a de estar sempre com o pé na embraiagem de uma indignação incontida, aquela que evoluiu do miúdo que cerra os punhos para afundar as unhas na carne ou morde a própria mão com os nervos. E foi assim que acabou por criar alguns dos momentos mais memoráveis da série que desenhou o sorriso torto dos anos 1990, um humor de quem mede a vida em colherinhas de café e a sorve de forma ruidosa, fazendo apreciações que balançam entre o sarcasmo e o delírio.

Como Frank Costanza, Stiller tinha a alma feita em farrapos, sempre a ameaçar o delíquio, desgostoso com as asneiradas do filho, George, interpretado de forma magistral por Jason Alexander. Nessa sátira nem lhe faltava o bordão de uma frase para acalmar os nervos e que tinha ouvido de uma dessas cassetes de relaxamento: “serenidade agora”. E lá repetia o seu mantra gritando como quem ameaça alfinetar os anjos todos ainda antes de chegar aos céus.

Embora, como lembrava o The New York Times, apenas tenha participado em 30 dos 180 episódios de “Seinfeld”, e a sua primeira aparição apenas ter ocorrido na quinta temporada, foi como se tivesse desenhado uma personagem décadas antes de o contexto amadurecer para lhe proporcionar o contexto ideal, entre um bando de figuras expandem certos traços temperamentais a uma épica da picuinhice, tornando-se clássicos da espalhafatosa mitologia das sitcoms. Antes de Stiller arrebatar o papel, Frank tinha já aparecido num episódio da quarta temporada, mas, quando a série acabou, as suas cenas foram filmadas de novo para garantir a continuidade quando a série se tornou um sucesso monstruoso numa segunda vida nas constantes emissões no cabo, prosseguindo hoje, sem mostras de cansaço, a sua volta triunfal já na era do streaming, sendo disputada por somas milionárias entre os serviços concorrentes.

Meses depois do final de “Seinfeld”, Stiller tomou meio calmante e levou Frank para uma outra encarnação, desta vez na série “The King of Queens”, onde as suas aparições eram bem mais frequentes. Como Arthur Spooner, não largou a farda desses militares da decência, desta vez como sogro do personagem principal, também ele um trapalhão que paga o preço de ter casado com uma beldade, aturando o pai chanfrado. Anne Meara também foi aparecendo em alguns episódios desta série e, na última temporada, a sua personagem e a de Stiller casam-se, numa homenagem da ficção a um dos casais que não só engrandeceram a cena da comédia como asseguraram a descendência.

Jerry e Anne conheceram-se em 1953, quando ambos tentavam safar-se como atores, e casaram-se no ano seguinte. Começaram a trabalhar juntos em 1959 no elenco dos Compass Players, um grupo de teatro de improvisação que, mais tarde, evoluiu dando lugar ao grupo Second City. Mesmo depois da parceria se ter dissolvido, o casamento prosseguiu e os dois continuaram a atuar juntos, pontualmente, como aconteceu na série de breves vídeos que foram lançados na internet entre novembro de 2010 e março de 2011. Produzida pelo filho, Ben, nestes clipes que duram cerca de dois minutos, os dois discutem alguns temas na ordem do dia ou vão buscar algum ao molhe dos preferidos. Num deles, como recorda o Times, discutem os obituários, e Stiller finge-se chocado ao aventar a hipótese do jornal já ter os seus obituários escritos. Depois, num sublime resumo da vertente de ironia que esbofeteia e satiriza os excessos da indignação, Stiller questiona-se se a notícia já terá sido atualizada de modo a incluir a sua recente colaboração com Veronica Lake numa nova encenação de “Peter Pan” – uma produção que subiu aos palcos seis décadas antes. E é nessa altura que a mulher se lembra de um formidável gesto romântico de Jerry, que, na altura em que o seu sogro morreu, convenceu o Times a fazer-lhe um obituário, com o argumento (falso) de que este tinha escrito boa parte do material que entrava no número de comédia deles os dois. Depois desta confissão de Anne, Jerry veste a farda da consternação, e bate a continência ao grande jornal, fingindo estar preocupado com a possibilidade de vir a ser castigado na hora da sua morte. “Aquilo que acabaste de dizer pode-nos arranjar chatices com o The New York Times! Eu arrisco-me a nem ter um obituário!” A piada, afinal, serviu como o remate perfeito para a notícia do seu desaparecimento, com Stiller a roubar à morte a sua punchline.