O Tribunal Constitucional alemão deu três meses ao Banco Central Europeu para provar que os programas de compra de dívida pública cumprem “proporcionalidade na prossecução dos objetivos de política monetária para os quais se encontra mandatado”. De acordo com a justiça alemã, qualquer forma de financiamento direto ou indireto dos Estados através do BCE pode ser ilegal à luz dos tratados europeus e da Constituição alemã.
No momento em que o Banco Central Europeu prepara um programa de compra de ativos de 750 mil milhões de euros para fazer face às necessidades de financiamento dos Estados perante a pandemia, isto pode significar que a Alemanha fica arredada da “bazuca”. As consequências diretas seriam o fim do programa de compra de ativos e o disparar do custo da dívida pública dos países do sul (o que, aliás, já está a acontecer). A Alemanha, que tem taxas de juro negativas, seria então o refúgio natural dos capitais em fuga das dívidas soberanas “de risco”, lucrando diretamente com a crise.
Ainda sem desfecho, este episódio já nos diz quase tudo sobre a Europa alemã. Aquela em que o Tribunal Constitucional português nada pode contra a imposição de austeridade, mas o tribunal alemão tudo pode contra o BCE. Aquela que justifica sanções para uns e perdão para outros porque “a França é a França”, ou nem sequer chega a procurar justificação para o reiterado incumprimento das regras de Maastricht por parte da Alemanha.
A Alemanha fez os tratados europeus à sua imagem. Ou, melhor dizendo, à imagem dos seus interesses, geralmente (mas nem sempre) alinhados com os do diretório europeu. Uma economia forte com uma moeda forte não aceitaria nenhuma forma de integração europeia que não tivesse os instrumentos necessários para garantir a sua vantagem, mesmo que à custa do desenvolvimento dos outros países.
É a história da construção do euro, que automaticamente beneficiou as economias com setores exportadores muito fortes e de valor acrescentado; mas também das regras orçamentais, macroeconómicas e de concorrência, que expõem as economias mais frágeis a políticas de baixos salários, a privatizações de empresas estratégicas e à dependência de grandes multinacionais, não raramente alemãs.
É a história do Banco Central Europeu que, ao abrigo de uma suposta independência, recusa a sua natureza de banco central, que é suportar as economias em tempos de crise. Atrás dessa proibição de financiar os Estados e as políticas públicas esconde-se a política monetária europeia ao serviço da economia alemã.
É essa vantagem que a Alemanha quer garantir, agora e para o futuro, e por via de tribunais, não vá a política tecê-las. Não o faz por interesse nacional tanto quanto por ser representante de um verdadeiro diretório, não político, mas financeiro. O capital que privatiza nos países do sul, que especula com as dívidas, que é acionista multinacional em Portugal mas paga impostos na Holanda. Esse centro de poder está confortável com a Europa alemã.
Estes são os instrumentos europeus da nossa desigualdade e que, por muitas promessas que nos façam, nunca mudam o suficiente para nos folgar as costas. Porque outras Europas só podem surgir fora das instituições e dos tratados europeus. Lá dentro, a Europa alemã é a única Europa que realmente existe.
Deputada do Bloco de Esquerda