É quase impossível passar na Avenida das Forças Armadas, em Lisboa, sem viver momentos de tensão. À hora de ponta, a avenida é inundada por condutores que querem chegar a horas ao trabalho ou, no final do dia, chegar o mais depressa possível às suas casas. Há momentos de tensão quando os semáforos dão luz verde para os condutores passarem e há sempre algum que, preocupado em olhar para o relógio, ouve uma buzina a reclamar atrás do seu veículo. Pode ser um carro, uma mota que não consegue escapar entre os veículos ou uma ambulância a caminho do Hospital de Santa Maria, que tem as traseiras viradas para a avenida.
No último mês, a tensão deixou de estar nas avenidas, onde há cada vez menos condutores, e dissipou-se até aos hospitais – onde não há hora de ponta e onde, todos os dias, centenas de pessoas são diagnosticadas com covid-19. A tensão pode, porém, estar ao virar da esquina, e, no número 1 da Avenida Professor Gama Pinto, mede-se em volts.
galinha dos ovos de cobre Eram quase três da manhã quando o telefone tocou. “Aqui temos turnos de 24 horas. Há sempre gente aqui”, explica Nuno Quintela, à entrada da Subestação Norte da EDP, que serve os concelhos de Lisboa, Amadora, Oeiras e Cascais quando há avarias relacionadas com a média e alta tensão, que podem deixar empresas, supermercados, vários bairros e hospitais às escuras – pelo menos, até os geradores começarem a funcionar. No início desta semana, a chamada noturna “só deu prejuízo”. “Foram ali mais de 24 horas de trabalho”, desabafa o técnico de instalações elétricas, que está responsável pela organização de trabalhos e serviços, explicando que, nessa noite, o que fez disparar o alarme foi o roubo de cobre de um edifício abandonado. “Estava tudo vandalizado. Tudo roubado. Inclusive, o cobre dos aparelhos de ar condicionado dos pisos acima”, explica o eletricista de exploração Carlos Barbosa, que nessa noite também estava a trabalhar. O membro “mais novo” daquela equipa, que já conta com 20 anos de trabalho na EDP, está certo de que “com a crise económica que aí vem, as pessoas vão começar a arriscar mais” e começar a roubar cobre para vender. “E nós temos cobre aos quilos dentro de cada posto de transformação”, explica Nuno Quintela.
Apesar de o cobre ser visto por muitas pessoas como a galinha dos ovos de ouro, Carlos Barbosa explica que, “infelizmente, às vezes corre mal”, e quem tenta roubar “sem proteção, sem saber”, muitas vezes acaba por morrer com um choque de 10 mil volts, como aconteceu, também esta semana, em Odivelas. Quando receberam a chamada, sabiam que poderiam deparar-se com “um rato, uma cobra ou um gato”, como acontece muitas vezes, mas era uma pessoa. “É mais um intestino que temos de ter para engolir situações como esta”, explica Nuno Quintela.
À espera de um telefonema que traga o primeiro trabalho do turno está também Eduardo Dias. Mas o telefone pode não tocar durante todo o dia ou haver serviços atrás uns dos outros. “Somos o INEM da eletricidade”, brinca o técnico de exploração. Para além do trânsito lá fora, que já não é suficiente para falar em hora de ponta, quase nada mudou nestes dias de isolamento. O trabalho continua a ser feito com o mesmo empenho, e as avarias resolvidas com a mesma pressa. Se são resolvidas mais rapidamente, a razão está lá fora, nas avenidas. “As pessoas, às vezes, não conseguem entender porque demora tanto tempo, mas temos de estar nas filas como os outros estão”, explica Eduardo Dias, que trabalha há 25 anos no serviço de piquete de urgência da EDP.
hora de ir para casa É quando chega a hora de ir para casa que as coisas começam a ser diferentes. Apesar de estarem pouco tempo juntos, era durante a troca de turnos que conviviam com os colegas. “Agora procuramos não nos cruzar”, diz Eduardo, explicando que enquanto uns entram pela porta de entrada, os outros saem pelas traseiras, onde as carrinhas de piquete de urgência estão estacionadas – a poucos metros de um posto de seccionamento que transforma 220 mil volts em 60 mil. “E dos 60 mil volts é que são alimentadas todas as subestações que temos aqui à volta de Lisboa”, que hão de ser entre 20 e 30, explica Carlos Barbosa.
“Nós tivemos de aprender que, se cuidarmos de nós, também estamos a cuidar dos outros. Esse é o princípio”, afirma Eduardo Dias, que confessa prestar agora mais atenção a coisas a “que antes nem ligava”. “Temos os nossos produtos de limpeza”, diz, enquanto olha para as soluções de álcool-gel. “Os puxadores das portas, o corrimão – ainda está húmido”, garante, afirmando que não é só no local de trabalho que as pessoas têm mais cuidados. “As pessoas chamam o elevador com a chave, já não carregam com o dedo”, explica.
“Há trabalhos que já se tinha, mas agora pensamos mais neles”, concorda o colega Carlos Barbosa, com quem trabalha há 12 anos.
Em sua casa, as coisas também mudaram. “Chego e tenho uma zona segura, na entrada, para deixar a roupa”, confessa, explicando que não é a roupa com que faz o trajeto desde a Subestação Norte até casa. “Tenho três crianças pequenas. Convém ter esse cuidado se ando de um lado para o outro”, explica, adiantando que por “pensarem menos nas consequências e não terem a noção”, o isolamento é para os filhos – de 20 meses, cinco e dez anos – “uma brincadeira”. “No outro dia fizemos um jogo com a menina. Fizemos um inquérito sobre a mãe e perguntámos-lhe o que é que a mãe está sempre a dizer”, contou. A resposta podia ter sido dada pelas autoridades de saúde, mas a criança de cinco anos não hesitou em responder: “Temos de limpar a casa por causa do coronavírus”.
Apesar de já ter alguns destes cuidados quando chegava a casa, Carlos explica que este reforço só começou a ser feito automaticamente “ao fim de uma ou duas semanas”. Para as crianças, a história é outra. “Adaptam-se melhor que nós. Quando eu entro, perguntam: “Já lavaste as mãos?”
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