A melhor versão de nós próprios


Devemos parar e refletir sobre os modelos económicos, sociais e políticos que nos regem e qual a preponderância que desejamos integrar nas nossas decisões.


A entrevista do general Ramalho Eanes despertou nos portugueses uma admiração e reconhecimento que há muito não se via. Não tardou a tornar-se viral a declaração mais destacada da conversa que teve em direto com a jornalista Fátima Campos Ferreira, nos estúdios da televisão. Em vez de ficar em casa, atrás de um computador, confinado a um retângulo, que no fundo teria uma estante com livros ou um quadro bonito da sua residência, escolheu deslocar-se aos estúdios para nos inteirar sobre a sua opinião e conhecimento acerca da situação dramática e inédita que vivemos.

Não há dúvida que o trecho da sua entrevista selecionado para resumir tudo o que foi dito em meia hora, repetido vezes sem conta nas redes sociais, é chocante pela sua coragem e altruísmo e revela uma ausência de individualismo rara nos dias de hoje e difícil de encontrar no próximo.

Uma lição de humanidade, de virtude e de entrega. Exemplar na sua mensagem e no que devemos reter para enfrentar os desafios diários e os que começam a desenhar-se no horizonte.

A mensagem em tempos de crise deve ser clara e objetiva. Ramalho Eanes conseguiu criar empatia com os cidadãos ao falar de amor, de solidariedade e de união – valores pouco reconhecidos no dia-a-dia e dispensáveis, contrapondo-se-lhes a falta de tempo e a corrida incessante pela plenitude pessoal. O amor implica um recipiente para o receber, seja uma pessoa, um animal, uma dedicação… Trata-se da manifestação de uma externalidade que parte de um indivíduo para ser acolhido por outro. Ora, o individualismo que tem sido alimentado na sociedade carece desta cadeia de circulação de sentimentos, como o amor, a bondade ou a solidariedade.

Ouvir um homem que já viveu tudo partilhar publicamente uma responsabilidade que sente no seu interior e que o define na sua humanidade e generosidade, assumindo um compromisso com o próximo sem qualquer reserva, como se fosse o único caminho possível perante uma situação irremediável, revela-nos um sentido de honra e ética moral irrepreensível e exemplar.

Nem todos estão preparados para seguir este exemplo, por várias condicionantes que marcam a sua vida e interdependências pessoais. Mas é impossível ignorar que há alguém que está preparado, por sua iniciativa e consciência, para dar a sua vida a quem estiver ao seu lado, num momento de vida ou de morte.

Os portugueses ficaram maravilhados com este statement, inaudito para as últimas gerações, as mesmas que não viveram a Revolução de Abril, a Guerra do Ultramar, o Holocausto… Esta é a crise para as gerações mais novas, vivida na primeira pessoa – aquela que irão contar aos netos e gravarão na sua memória como tempos de confinamento e de medo. A partir daqui não serão os mesmos, porque a dor ficou inscrita nas suas memórias e corpos, e a experiência decorrente desta provação servirá como referência para decisões futuras e condicionará a mensagem a transmitir aos mais novos, para que estes beneficiem com a nossa aprendizagem em situações semelhantes e possam até evitar o ressurgimento deste terror que paira sobre o mundo.

Noah Harari, historiador israelita, lançou o debate sobre a encruzilhada onde nos encontramos muito antes da pandemia. Chegados aqui, dizia o autor, devemos parar e refletir sobre os modelos económicos, sociais e políticos que nos regem e qual a preponderância que desejamos integrar nas nossas decisões: o respeito pela vida, a proteção dos mais frágeis, a educação humana e moral, a interdependência cooperante? Ou simplesmente manter os que nos fizeram chegar até aqui e continuar em busca da imortalidade, da felicidade e da paz? Depois disto, faz ainda mais sentido equacionar os princípios e os padrões culturais recentemente adquiridos e que nos definiam como progressistas e liberais. Sempre que buscamos a imortalidade tropeçamos no valor da vida, a felicidade empurra-nos para o individualismo e a paz pressupõe a preparação para a guerra.

Na última crónica escrevi sobre o altruísmo em tempo de guerra – um texto que descrevia pessoas como o general Ramalho Eanes, ainda antes da sua entrevista sábia e inspiradora.

 

Escreve quinzenalmente


A melhor versão de nós próprios


Devemos parar e refletir sobre os modelos económicos, sociais e políticos que nos regem e qual a preponderância que desejamos integrar nas nossas decisões.


A entrevista do general Ramalho Eanes despertou nos portugueses uma admiração e reconhecimento que há muito não se via. Não tardou a tornar-se viral a declaração mais destacada da conversa que teve em direto com a jornalista Fátima Campos Ferreira, nos estúdios da televisão. Em vez de ficar em casa, atrás de um computador, confinado a um retângulo, que no fundo teria uma estante com livros ou um quadro bonito da sua residência, escolheu deslocar-se aos estúdios para nos inteirar sobre a sua opinião e conhecimento acerca da situação dramática e inédita que vivemos.

Não há dúvida que o trecho da sua entrevista selecionado para resumir tudo o que foi dito em meia hora, repetido vezes sem conta nas redes sociais, é chocante pela sua coragem e altruísmo e revela uma ausência de individualismo rara nos dias de hoje e difícil de encontrar no próximo.

Uma lição de humanidade, de virtude e de entrega. Exemplar na sua mensagem e no que devemos reter para enfrentar os desafios diários e os que começam a desenhar-se no horizonte.

A mensagem em tempos de crise deve ser clara e objetiva. Ramalho Eanes conseguiu criar empatia com os cidadãos ao falar de amor, de solidariedade e de união – valores pouco reconhecidos no dia-a-dia e dispensáveis, contrapondo-se-lhes a falta de tempo e a corrida incessante pela plenitude pessoal. O amor implica um recipiente para o receber, seja uma pessoa, um animal, uma dedicação… Trata-se da manifestação de uma externalidade que parte de um indivíduo para ser acolhido por outro. Ora, o individualismo que tem sido alimentado na sociedade carece desta cadeia de circulação de sentimentos, como o amor, a bondade ou a solidariedade.

Ouvir um homem que já viveu tudo partilhar publicamente uma responsabilidade que sente no seu interior e que o define na sua humanidade e generosidade, assumindo um compromisso com o próximo sem qualquer reserva, como se fosse o único caminho possível perante uma situação irremediável, revela-nos um sentido de honra e ética moral irrepreensível e exemplar.

Nem todos estão preparados para seguir este exemplo, por várias condicionantes que marcam a sua vida e interdependências pessoais. Mas é impossível ignorar que há alguém que está preparado, por sua iniciativa e consciência, para dar a sua vida a quem estiver ao seu lado, num momento de vida ou de morte.

Os portugueses ficaram maravilhados com este statement, inaudito para as últimas gerações, as mesmas que não viveram a Revolução de Abril, a Guerra do Ultramar, o Holocausto… Esta é a crise para as gerações mais novas, vivida na primeira pessoa – aquela que irão contar aos netos e gravarão na sua memória como tempos de confinamento e de medo. A partir daqui não serão os mesmos, porque a dor ficou inscrita nas suas memórias e corpos, e a experiência decorrente desta provação servirá como referência para decisões futuras e condicionará a mensagem a transmitir aos mais novos, para que estes beneficiem com a nossa aprendizagem em situações semelhantes e possam até evitar o ressurgimento deste terror que paira sobre o mundo.

Noah Harari, historiador israelita, lançou o debate sobre a encruzilhada onde nos encontramos muito antes da pandemia. Chegados aqui, dizia o autor, devemos parar e refletir sobre os modelos económicos, sociais e políticos que nos regem e qual a preponderância que desejamos integrar nas nossas decisões: o respeito pela vida, a proteção dos mais frágeis, a educação humana e moral, a interdependência cooperante? Ou simplesmente manter os que nos fizeram chegar até aqui e continuar em busca da imortalidade, da felicidade e da paz? Depois disto, faz ainda mais sentido equacionar os princípios e os padrões culturais recentemente adquiridos e que nos definiam como progressistas e liberais. Sempre que buscamos a imortalidade tropeçamos no valor da vida, a felicidade empurra-nos para o individualismo e a paz pressupõe a preparação para a guerra.

Na última crónica escrevi sobre o altruísmo em tempo de guerra – um texto que descrevia pessoas como o general Ramalho Eanes, ainda antes da sua entrevista sábia e inspiradora.

 

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