Madam C.J. Walker. Como os cabelos lhe deram um império

Madam C.J. Walker. Como os cabelos lhe deram um império


A Netflix estreou há dias a minissérie Self  Made: Inspired by the life of  Madam C. J. Walker, que nos leva pela história da criação de uma das mais bem sucedidas empresas de cosmética do início do século passado, nascida da argúcia de uma empresária improvável.


Era filha de escravos, ganhava a vida como lavadeira, foi vítima de violência doméstica e, a dada altura, estava tão doente e desanimada que o cabelo – que mesmo sem quaisquer destes problemas, por ser mulher negra, nunca tinha sido fácil de manter nas condições que a própria considerava ideais -, começou a cair. “Pareces um cão sarnento”, ter-lhe-á dito o marido antes de uma das sovas costumeiras. Foi neste contexto particularmente difícil que Sarah Breedlove se fez mulher, ainda para mais se tivermos em conta que, no início do passado século, o fosso entre os géneros era, quase pela certa, intransponível para quem começou a sonhar com negócios. Apesar dos percalços, acabaria por se casar novamente e tomar o nome do novo marido – CJ Walker. E foi já com o nome de Madam CJ Walker que criou um império milionário do zero, após ter detetado uma falha profunda num mercado pronto a eclodir: o dos cuidados capilares pensados para os cabelos das afrodescendentes.

Nascida a 23 de dezembro de 1867, no Louisiana, Sarah Walker transformou todas as fraquezas em combustível empresarial e tornou-se num caso de sucesso sem precedentes – tanto que ainda hoje figura no livro de recordes do Guinness como a primeira mulher a tornar-se milionária às suas próprias expensas: ou, como diz a expressão tão intrinsecamente norte-americana, foi uma self made (neste caso) woman. E foi precisamente este título que a Netflix foi buscar para, numa minissérie de quatro episódios, percorrer velozmente mais a história da empresa do que da própria Sarah, aqui interpretada por Octavia Spencer, e que há dias chegou ao canal de streaming.

Em Self-Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker pouco nos é mostrado da engrenagem mental de Sarah, dos artifícios sobre-humanos a que teve certamente que recorrer para atingir o sucesso, nem temos grandes pistas sobre de onde lhe surgiram as inovadoras campanhas de marketing que lançou à época. Não sabemos quando aprendeu a ler, nem tampouco se o facto de se ter lançado com a sua própria marca de cuidados capilares tenha nascido de uma contenda com Annie Turnbo Malone (1869-1957) ou, como é apresentada na série Addie Munroe (interpretada por Carmen Ejogo). A personagem de Addie, a arqui-inimiga de Walker na série, é quem ajuda primeiro Sarah a recuperar o seu cabelo perdido. Mais tarde, contudo, recusa a ajuda de Sarah para vender os seus tónicos, afirmando que o visual de “plantação” da lavadeira não serve para falar de beleza – e é aí que Sarah Walker começa a fabricar os seus próprios produtos. O tónico “Wonderful Hair Grower da Madame CJ Walker”, o primeiro da linha, foi, efetivamente, lançado em 1905.

Annie Malone foi a primeira das duas a dedicar-se ao mundo dos produtos capilares, mas na vida real não tinha nenhuma das ‘facilidades de’ Addie na série – aqui apresentada como uma mestiça de pele clara com os cabelos longos, encaracolados e dourados, que dizia que todas as mulheres negras queriam ser como ela. A verdadeira Annie também vinha de um passado igualmente pobre, e não de certa forma privilegiado, como nos parece mostrar a personagem que a inspirou, além de ter construído igualmente um negócio milionário.

As características físicas de Addie acabam por ser apenas acendalhas para uma contenda que dá jeito por três motivos. Primeiro, todas as histórias precisam do seu anti-herói. Depois, servem de gatilho para Sarah arrancar com a sua própria empresa e continuar insistentemente a expandi-la, contra tudo e todos. Por outro, são uma forma de politizar os tempos – num dado momento, trazem para narrativa uma pesada herança histórica: fingindo indiferença, Sarah recorda Addie que os seus cabelos mais não são do que o produto de violações das mães, avós, de todas as mulheres negras que assim engravidaram dos seus opressores, antes de declarar que os seus produtos sao os verdadeiramente pensados para as mulheres ‘como ela’. Ou seja, sofridas, oprimidas, e que agora querem uma nova vida.

Escapar ao ciclo da pobreza A relação entre as duas empresárias é uma das linhas em que os argumentistas Nicole Jefferson Asher e Elle Johnson (que se inspiraram no livro On Her Own Ground, escrito pela trineta de Walker, A’Lelia Bundles) passaram boa parte do tempo, escolhendo deixar ao largo, por exemplo, a infância de Sarah, que nos aparece em meia dúzia de imagens soltas que não conseguiremos situar caso não soubermos a verdadeira história. E a verdadeira história é esta: filha de Owen e Minerva Breedlove, Sarah foi o quinto dos seis filhos do casal e o primeiro membro da família a nascer em liberdade – embora tal ainda tenha acontecido na mesma plantação, em Delta, onde os pais foram escravizados, vida da qual só libertariam após o fim da Guerra Civil.

Ficou órfã aos sete, sob os cuidados da irmã mais velha, e viram-se obrigadas a apanhar o malogrado algodão para sobreviver. Foi vítima de abusos e, para tentar escapar ao ciclo de pobreza, casou-se aos 14 anos com Moses McWilliams, que morreu em 1887, deixando-a com uma filha de dois anos, Lelia. E aqui entra um parênteses: esta que foi a única a única filha de Sarah adotou mais tarde o nome de A’Lelia Walker. Na série da Netflix, Lelia – Tiffany Haddish – é retratada como uma jovem estouvada e pouco dedicada ao negócio que, a dada altura, percebe que é homossexual e chega a conversar com a mãe sobre isso. Contudo, Lelia casou-se três vezes e à data da sua morte, em 1931, deixou a empresa num impecável estado financeiro.

Depois de enviuvar, Sarah mudou-se para St. Louis, no Missouri, onde a história da série começa efetivamente a ser contada. Foi aqui que se juntou à African Methodist Episcopal Church, onde conheceu líderes negros que a inspiraram, diz-nos a biografia que lhe dedica o National Women’s History Museum. Casou em 1894 com o tal marido que lhe batia e, depois do divórcio, caiu no fundo do poço. Começou a usar o tónico “The Great Wonderful Hair Grower”, de Annie Malone, que a aceitou como sua agente de vendas e em 1905 mudou-se para Denver, no Colorado, e casou com Charles Joseph Walker. Os passos da empresa que se veem na série, a partir deste momento, relatam o crescimento exponencial de um verdadeiro império.

CJ Walker foi, porventura, a primeira pessoa a perceber no seu todo as potencialidades do mercado dos cuidados de beleza feminina, pensados para responder às necessidades de um gigantesco número de mulheres que viam também, na forma de se apresentarem, uma outra forma de liberdade. “Queremos ser cosmopolitas”, dizia na série perante o seu ‘exército’ de vendedoras que levaram os seus produtos por todo o país.

Quando morreu, em 1919, aos 51 anos, geria um negócio multimilionário e tinha acumulado um milhão de dólares na sua conta pessoal. Foi a primeira mulher negra a mudar-se para o exclusivo Westchester County, para uma mansão à qual deu o nome de “Villa Lewaro”, localizada nada mais nada menos do que ao lado da propriedade dos Rockefeller – na série, é até retratado um curto mas pouco provável diálogo entre os dois. E, para lá da empresa e da fortuna, deixou outros legados importantes – foi uma generosa filantropa e, como ativista, fez parte do movimento anti-linchamento. Quase nada disso nos conta a adaptação da história da sua vida, mas no final dos quatro episódios que se veem de uma assentada, há pelo menos uma ideia que passou: a beleza, como reflexo de saúde e confiança, pode ser realmente uma grande arma – na autoestima e nos negócios.