Eugénio Fonseca. “O rótulo de bispo vermelho veio de dentro da Igreja”

Eugénio Fonseca. “O rótulo de bispo vermelho veio de dentro da Igreja”


Presidente da Cáritas Portuguesa escreveu as memórias do tempo em que trabalhou com o bispo de Setúbal D. Manuel Martins. “A crise não é passado”, diz.


Está há 20 anos à frente da Cáritas Portuguesa, uma missão que começou a desenhar-se logo nos primeiros anos em que começou a trabalhar com o bispo de Setúbal D. Manuel Martins, na crise profunda que atingiu o distrito no início dos anos 80, e percebeu que ser cristão o obrigava a intervir junto da comunidade e dos mais vulneráveis. Para que o exemplo que o transformou se mantenha vivo, escreveu agora as suas memórias desses anos de colaboração. Testemunho de Duas Vidas Compartilhadas (Ed. Paulinas), com prefácio de Ramalho Eanes, é apresentado este sábado no Porto. Pretexto para uma conversa sobre esses tempos, o capital que não tem coração, como lhe disse uma vez D. Manuel Martins, e os desafios que o país continua a ter pela frente neste virar de década. 

O que o levou a escrever estas memórias?

Foi fazer aquilo que ele devia ter feito e não fez. Os mais próximos, sempre lhe pedimos, porque achámos que era importantíssimo, não para ele, mas para que outros tivessem a oportunidade de conhecer as suas memórias. A determinada altura disse-me que já tinha título, mas nunca chegou a fazê-lo. Tinha pensado em “Pedaços de Mim”. Pensei se o deveria usar, mas não encontrei forma de o fazer. Mas o que contém é isso, pedaços da minha vida partilhada com ele.

D. Manuel Martins chega a Setúbal em pleno PREC, no verão de 75. O Eugénio tinha 18 anos. Escreve que ele foi visto como um bispo que vinha do Norte, reacionário. Que imagens guarda dessa altura?

Setúbal é um distrito muito marcado pelo operariado. Já era um espaço de participação cívica muito forte antes do 25 de Abril e depois da revolução havia o fulgor dos sonhos que se realizavam. Havia da designada esquerda uma presença fortíssima.

Não estava nesses movimentos.

Eu era mais reacionário, não era bem de esquerda. Como agora também não sou de esquerda nem de direita.

Não é mais hoje do que era nesse tempo?

Não, e essa pergunta ajuda-me a marcar aquela que também era a posição de D. Manuel Martins. Fiz uma opção de vida, que foi por seguir o exemplo e o pensamento expresso nos Evangelhos na pessoa de Jesus Cristo. Até aos 18 anos, este meu seguimento era uma pertença religiosa muito marcada por ritualismos, às vezes não entendendo bem o que estava por detrás deles. Jesus Cristo era mais um ente transcendente às minhas possibilidades de me fazer próximo dele do que o Jesus humano que viveu a nossa realidade. Até ali, a minha vivência estava muito ligada à catequese, à liturgia, e foi D. Manuel que me levou a descobrir as exigências do compromisso de ser cristão. Sem dispensar os ritos, que são expressarmos por sinais visíveis dimensões da vivência cristã, ajudou-me a entender que tudo aquilo que eu lia nos Evangelhos tinha de se tornar vida e que eu tinha de ser protagonista dessa vida. 

Cita neste seu livro uma frase do bispo de Setúbal: “Uma igreja que não serve não serve para nada”. 

Sim, é isso. D. Manuel, a determinada altura, foi acusado de ser comunista e também a esquerda achou muitas vezes que ele devia ser mais frontal com o poder instituído. Não foi comunista, foi cristão. Como eu não sou de esquerda nem de direita – dou-me com pessoas que considero que querem seguir na senda da construção do bem comum e encontro-as na direita e na esquerda.

Nunca pensou ir para padre? Escreve que na altura em que D. Manuel Martins chegou a Setúbal vivia praticamente na igreja.

Pensei antes de ele chegar. Aos meus 14 anos tive logo uma eleita, conhecemo-nos na paróquia, fomos namorando, mas depois disso pôs-se-me a questão. Havia dentro de mim uma divisão muito grande, se havia de me entregar na missão do sacerdócio e, por outro lado, a questão do desprendimento dos meus pais, da minha família, quem cuidaria dos meus pais. Esta divisão era uma faca e fez-me sofrer tanto que tive de procurar um psicólogo. Escolhi um psicólogo padre.

Podia ter sido mais isento…

Pois, mas ele foi muito assertivo, foi muito fiel à ciência, e disse-me que as divisões que eu tinha eram um sinal evidente de que não estava vocacionado para ser padre. Mais tarde, um dia, o bispo chamou-me e perguntou-me o que queria fazer da vida. Não sei porquê, respondi-lhe que queria casar. Saí do encontro e fui à procura da minha namorada, que esteve dez anos à espera que eu decidisse o que fazia da minha vida. Temos um casamento que dura há 34 anos.

Como foram os primeiros contactos com este bispo vindo do Norte? 

Não o compreendi logo porque este processo de transformação da minha visão sobre as coisas não aconteceu de repente. Pouco depois de chegar instituiu uma coisa que até foi muito questionada, que era uma assembleia de representantes de organismos e comunidades católicas na diocese. Uma vez fui a uma assembleia e não gostei nada, achei que era gente infiltrada do Partido Comunista, achava que algumas intervenções não eram elegantes, punham questões ao bispo que eu achava que não lhe competiam. Hoje sei que sim, mas na altura tinha a ideia de que o bispo tinha de se ocupar das coisas da Igreja e as coisas do trabalho eram para os sindicatos e para os outros. Mas ali, desde logo, os leigos tinham palavra, o bispo dava-lhes importância.

Era uma Igreja mais democrática?

Diria mais em comunhão. Hoje há conselhos de participação nas dioceses e penso que temos caminhado mais nesse sentido, embora ainda pudesse ser mais assumido o contributo que os leigos podem dar para as decisões. Julgo que com os apelos que têm vindo do atual pontificado para uma igreja mais à luz do concílio Vaticano ii, em que somos todos o povo de Deus, cada um com as suas tarefas, havemos de caminhar ainda mais.

Recorda D. Manuel Martins quando ouve o Papa Francisco?

Sim, e ele ainda apanhou os primeiros anos do pontificado e vivia muito entusiasmado. Mas soube sempre aproveitar o magistério dos papas que conheceu, desde logo Paulo vi, que o fez bispo.

E porque é que o terá mandado para Setúbal?

Isso são meandros e segredos que desconheço. Só sei que nós não queríamos. Fala-se numa manifestação de extrema-esquerda que houve à porta da catedral no dia em que ele foi ordenado bispo e tomou conta da diocese, mas antes disso houve alguma desilusão e frieza que partiu de alguns de nós que acompanhávamos D. João Alves, que era o vigário episcopal na região e que foi uma figura extraordinária, e que preparou connosco o terreno para a futura diocese. D. João Alves foi enviado para Coimbra e veio D. Manuel Martins, que era vigário no Porto, para Setúbal. Quando numa quinta-feira, pela hora de almoço, sai a notícia nas televisões com a cara de um sujeito que não conhecíamos de lado nenhum e que vinha do Porto, ficámos dececionados por ser alguém que vinha do Norte e não conhecia Setúbal.

Seguir-se-iam anos duros para a região. Que sinais começaram a chegar à Igreja?

Encerraram mais de 100 fábricas naqueles anos. Sendo um distrito que vivia do operariado, foi um rombo muito grande. Apareceu o fenómeno dos salários em atraso, a certa altura estavam sem receber mais de 1800 trabalhadores. Tivemos mais de 20% de desemprego. As pessoas iam bater à porta da Igreja a pedir ajuda. D. Manuel gostava pouco de estar no gabinete, gostava de ir à comunidade, de andar na rua, e as pessoas iam à procura dele. Os próprios sindicatos, os tais de esquerda, começaram a procurá-lo sobre os problemas que havia. Repetiam-se os casos de empresas que fechavam ou despediam metade dos trabalhadores, como vimos na última crise, e as pessoas ficavam sem meios de subsistência, começou a aparecer a fome.

Que casos viam?

Eu, na altura, era professor de Moral e recordo-me de ser preciso acudir às crianças e jovens que iam para a escola sem comer. Às vezes, de manhã, nas aulas de Educação Física, chegavam a desmaiar. E é preciso ver que nessa altura não havia os apoios sociais que, apesar de tudo, existiram nesta última crise. Numa semana chegaram a suicidar-se 20 pessoas. Tivemos muitos suicídios no distrito, pessoas que desesperavam por não terem trabalho, por terem de entregar as casas aos bancos. E outra coisa que apareceu ali pela primeira vez e que hoje passou a estar instituída no léxico social foram os desempregados de longa duração, gente que ficou na expetativa de encontrar um novo posto de trabalho e nunca encontrou. Alguns conseguiram reconverter-se, outros, com habilitações escolares mínimas, não conseguiram, e isso trouxe problemas muito graves às famílias, e de saúde, com depressões. Aos miúdos, isto tudo trazia um grande desânimo, porque também era claro que a crise não tinha batido à porta de toda a gente.

As marcas ficaram em Setúbal?

Penso que sim, não só negativas. Também ajudaram a que se criasse um espírito mais humanista na convivência entre as pessoas que ainda hoje se mantém. Mas ao mesmo tempo trouxe um desinteresse pela participação na causa pública. As pessoas têm compaixão, quando se pede alguma coisa são muito generosas, mas, talvez por aquilo que sofreram, os níveis de participação cívica, para aquilo que foram, diminuíram muito. Houve alguma desacreditação das instituições e do Estado. E, depois, muitos tiveram de sair para ir trabalhar para as periferias, mudaram as dinâmicas, as pessoas perdem horas nos transportes, estão menos disponíveis.

A intervenção do bispo na fábrica Clérigo, que relata neste livro, é um dos momentos mais marcantes para si?

Sim. Eu não sabia que ele estava a acompanhar aquela situação. Era uma fábrica onde tinha acontecido uma coisa que também se viu na altura, que foi os trabalhadores assumirem a empresa. Estava à beira da falência e foi uma mulher, a eng.a Laurinda, que desafiou os colegas e tomaram conta da fábrica. Entretanto tinha crescido, eram uma metalomecânica que fazia contentores de navios, aumentaram postos de trabalho e tiveram de mudar de instalações. De repente, começaram os problemas, os clientes não pagavam a tempo, a preocupação foi assegurar salários e Segurança Social, e começaram a deixar para trás rendas do leasing do espaço. Veio a ordem de despejo. Percebeu-se a posteriori que os bancos já tinham clientes para o espaço, senão as coisas não tinham sido assim. 

Nessa altura trabalhava na Cáritas diocesana.

Sim, e o bispo telefona-me a pedir para ir com ele a um sítio. Nunca pergunto mais do que aquilo que me dizem, o que às vezes não é lá muito bom, e não perguntei para onde estávamos a ir. Só me apercebi quando vi à beira da estrada um aparato de GNR e cães. Os guardas barraram a entrada, a ordem que tinham dos representantes da empresa de leasing era para não entrar mais ninguém. O bispo pediu ao agente de segurança que comunicasse lá para dentro e aceitaram que entrasse. Lembro-me de entrarmos num espaço amplo e a zona da administração estava lá em cima, via-se a fábrica cá em baixo. E nunca mais me esqueci daquela imagem, homens e mulheres agarrados às máquinas. 

O que fez o bispo?

Usou todos os argumentos possíveis, apelou à humanidade, que era só uma questão de tempo, e eles, a única coisa que diziam era que estavam mandatados para o despejo, com a ordem judicial. Houve um que disse: percebemos bem porque está aqui, é a sua missão. E um disse-lhe que era católico, que tinha sido seu paroquiano em Cedofeita. D. Manuel pediu-lhe que não dissesse a ninguém que era católico, que podia ter usado a objeção de consciência. Não conseguimos nada. Estive muito tempo com aquela imagem de homens e mulheres agarrados às máquinas, pessoas da segurança a puxá-los, os gritos lancinantes dos trabalhadores eram uma coisa impressionante. Não sei que condições pode haver dentro de um ser humano para ser insensível àquilo. D. Manuel veio no carro calado e só a meio da viagem me disse: “O capital não tem coração”. Estacionámos, fui com ele para o gabinete e ele, com os olhos manchados, disse-me para ir ter com a pessoa do sindicato e saber em que condições iam ficar os trabalhadores. “Não quero que ninguém passe fome”. E assim foi: durante algum tempo, foram apoiados com o fundo de solidariedade que o bispo criou na diocese para estes casos. 

Só mais tarde é que o Governo cria um plano de emergência para a região.

Sim, ao início houve uma negação e só quando se torna demasiado evidente é que se percebe que teria de haver uma solução, senão seria o colapso. O bispo ajudou a amainar muitas situações e chegou a vir dinheiro do estrangeiro, de gente de boa vontade, católicos e não só, que ajudaram a pagar rendas em atraso, alimentação, medicação, até para criar postos de trabalho.

Foi para si o momento em que a Igreja teve um papel social mais decisivo?

Foi uma circunstância especial. O que o bispo fez de diferente foi ter uma intervenção sociopolítica sem medo de rótulos, que os teve. Não se pode fazer comparações, tem a ver com os contextos e com o perfil das pessoas. A virtude que ele teve ali foi perceber, em devido tempo, o sofrimento do povo a que ele passou a pertencer, e não ficar parado. A outras escalas, também vemos posicionamentos de bispos e comunidades cristãs; agora, D. Manuel Martins teve esta intervenção mais direta e explicita, e mesmo com incompreensões por parte de alguns setores da Igreja. O rótulo de bispo vermelho veio de dentro da Igreja.

Quem o chamou assim?

Nunca se sabe, começou a circular. Da mesma forma que já chamaram a Francisco o Papa vermelho. 

E o que dizia ele sobre isso?

Sentia tristeza por esses setores da Igreja não perceberem que só estava a cumprir o Evangelho. Não estava a seguir o marxismo, a adesão dele tinha sido ao cristianismo. E isso entristecia-o porque também poderia ser reflexo da má formação cristã que boa parte dos católicos poderiam ter.

Foi também acusado de se ter adaptado à realidade para ser mais bem aceite em Setúbal.

A visão negativa dessa adaptação, penso que foi apenas má vontade. Pior seria que uma diocese inteira tivesse de se adaptar a ele. Chegou a escrevê-lo: “Quem me fez ser bispo assim foi Setúbal”. O que ele fez bem, e é aquilo que a Igreja tem de saber fazer, é conseguir ler o que está a acontecer no país e, sem trair o que são os princípios fundamentais do compromisso de seguir Jesus Cristo, adaptar-se à realidade.

Acha que a Igreja tem sabido ler esses sinais?

Julgo que o Papa Francisco tem impulsionado esse caminho. Estamos a caminhar, mas vai levar o seu tempo para uma Igreja mais interventiva em que não haja tantos católicos praticantes e passe a haver mais católicos militantes. É essa a diferença que existe. Foi isso que se transformou em mim ao conhecer D. Manuel. Não basta cumprir ritos, temos de, na vida quotidiana, dar provas daquilo que professamos, e isso atira-nos para um compromisso novo, sobretudo aos leigos. 

Trinta anos depois mantém essa visão que lembrava há pouco de que o capital não tem coração?

Não tem. Vemos enormes assimetrias globais e desigualdades que levam aos fluxos migratórios, que é uma realidade para a qual temos ainda de encontrar resposta. Portugal tenta ser um país de multiculturalidade, mas penso que a Europa ainda não encontrou o caminho certo. As reações que alguns países têm tido são perfeitamente desumanizantes até porque, depois, são esses países que vão chamar imigrantes quando têm falta de mão-de-obra.

Vemos na Hungria um primeiro-ministro católico a assumir essa posição xenófoba. 

Infelizmente. É um mau exemplo. Mesmo dentro da Europa, uma Europa que se criou como união para fomentar o desenvolvimento integral dos países, é completamente desigual. E nós somos dos países menos beneficiados por essa união. E a mim, o que me espantava muito nos diálogos que tive com a troika durante a crise era que, dos responsáveis das três entidades, FMI, BCE e Comissão Europeia, a que se mostrava mais agressiva nos apelos que fazia em relação às pessoas em maior vulnerabilidade era o responsável do Banco Central Europeu. Muito pior que o FMI. E hoje estamos a ver outras facetas do capital, da usura do capital, que é a corrupção, por um lado, e os baixos salários, por outro. Vemos no mundo níveis de corrupção vergonhosos. 

Mais do que no passado ou estão mais expostos?

Qualquer pessoa atenta percebe que a riqueza não nasce de geração espontânea. Não tem havido mecanismos de combate e controlo e algumas vezes não há vontade política. O capital conseguiu atrair a classe política. Hoje temos Governos em que o poder financeiro se sobrepõe e isso faz com que não se atue a tempo ou não existam medidas mais assertivas. A distribuição da riqueza faz-se por via tributária e os impostos continuam, não só em Portugal mas em muitos lados, a incidir mais sobre o trabalho do que propriamente sobre o capital. Claro que ao defender impostos sobre o capital encontramos uma fragilidade, que é, hoje, não sabermos onde está o capital. Arranjou esta artimanha que também não há vontade política para resolver, que são os paraísos fiscais. Tínhamos de acabar com eles, no quadro das Nações Unidas, arranjar uma forma de penalização desses países que têm economias fortes à custa do desvio de recursos financeiros onde eles fazem falta. O grande segredo de uma política sadia é ter a arte de saber distribuir bem a riqueza produzida e em Portugal não é a isso que estamos a assistir quando vemos, por exemplo, salários cada vez mais baixos.

Os pedidos que chegam à Cáritas acabam por poder funcionar como um barómetro. O que o preocupa mais neste momento?

Preocupam-me muito os casais jovens. Nem é preciso ter um salário muito baixo. Aparecem-nos pessoas até com salários razoáveis mas que só um é que tem trabalho e o rendimento é pequeno para dois. Ou casais em que os dois recebem mas, a certa altura, passaram a ter dificuldade em pagar a renda de casa. Temos licenciados a receber 700, 800 euros. Hoje, um destes salários vai para a renda de casa. É impossível viver assim. Temos situações gritantes de pessoas que iniciaram uma vida em família e têm de a desmanchar, ir para casa dos pais, por vezes encontram-se nas refeições quando não há possibilidade de o casal ficar na mesma casa. São situações que nos narram constantemente. Mesmo os quartos em Lisboa e no Porto têm alugueres escandalosos. Gritamos sobre o inverno demográfico e depois não se criam condições para que as pessoas possam ter filhos. As pessoas estão ainda muito receosas de que amanhã lhes aconteça alguma coisa, o futuro é muito incerto.

Não vê mais otimismo do que nos anos de crise?

Criou-se um sentimento de maior esperança em relação aos indicadores económicos, que beneficiaram alguns, mas a classe média-baixa continua a viver com estes problemas. E é por isso que tenho vindo a alertar que a crise não é passado. Enquanto tivermos situações destas, temos de falar em crise. Enquanto tivermos dois milhões em risco de pobreza, 17% da população, temos de falar em crise. E temos de pensar que a pobreza afeta de modo especial as crianças, as famílias monoparentais. Claro que isto é atenuado por prestações, foi bom terem reposto o abono de família, os rendimentos de inserção, mas era bom que as medidas fossem estendidas, por exemplo, à área da habitação. Somos solicitados para ajuda neste campo e uma coisa que não percebo é que, nos programas comunitários, as questões da habitação só entram a título extraordinário e fica quase tudo dependente do Orçamento do Estado. Num país como o nosso, com 700 mil casas devolutas, deviam ser criados mais incentivos como aconteceu, por exemplo, para o alojamento local, que teve o lado positivo de incentivar o turismo mas afastou as pessoas da cidade. Penso que devia haver maior pressão sobre a UE para resolver os problemas da habitação. Pode não ser um problema comunitário mas, para nós, é. E penso que haveria uma medida para a reabilitação urbana que seria importante, que era o Estado chamar a si, quando houver nítida falta de vontade ou capacidade do proprietário para recuperar casas que poderiam ser colocadas no mercado, a posse dessas casas. Parte da renda daria ao proprietário e a outra parte amortizava o investimento. Se isto são medidas que poderiam ajudar, acredito que não há outra forma de obviar à pobreza senão por via do acesso ao trabalho e de termos salários compatíveis com o custo de vida.

Pensa que o aumento do salário mínimo devia ser mais rápido?

Tem de aumentar, mas é preciso rever tudo, porque grande parte das empresas são familiares e pequenas empresas, onde isso tem um grande impacto. É um problema complexo que passará sempre pelo apoio do Estado. Para o Estado ter mais recursos deve fazer-se uma restruturação fiscal. E para melhorar o acesso ao trabalho é preciso apostar na formação, para mais com a transformação social e tecnológica que se avizinha.

Preocupa-o que o fosso aumente?

Sim. Sem pôr em causa o contributo que as novas tecnologias possam dar para o aumento da riqueza e para a conciliação com o ambiente, não sei como é que a redução de postos de trabalho vai ser gerida. Talvez haja que inventar novas formas de trabalho, haver tempos menores de trabalho sem mexer nos salários, inventar novas profissões que levam a maior qualidade de serviços que hoje estão no domínio da economia social. Temos de investir muito na diferenciação de serviços para os mais velhos, que vai ser uma grande necessidade num país a envelhecer. E não é só lares, temos de criar condições para que as pessoas vivam nas suas casas com segurança e qualidade de vida. Temos cuidadores informais, que só agora começam a ser reconhecidos, mas talvez seja preciso estruturar esta missão, que pode não ser só de ajuda ao seu familiar, mas ao seu vizinho. Não sei se estamos a caminhar à mesma velocidade que estas tecnologias estão a chegar ao mercado para descobrir alternativas. 

Onde entra a caridade?

A caridade tem de ser sempre supletiva. Mas nos postos de trabalho também é preciso que haja uma relação de caridade entre quem gere e quem dá o seu contributo. Às vezes, a caridade que temos na nossa cabeça é a esmola, e isso não é bem a caridade. É uma expressão. A caridade é ter consideração pelo outro, é amar o outro. Em muitas relações laborais não existe caridade, por exemplo quando vemos administradores a ganhar o que ganham e os trabalhadores num diferencial muito grande. Para ter acesso ao trabalho é preciso acesso a formação, para mais nesta transformação social.

Tem havido um crescente debate sobre o racismo, que também levou D. Manuel Martins a tomar posição. Somos um país racista?

Somos um país com sinais crescentes de xenofobia e racismo e, além de casos como o que aconteceu naquele domingo no estádio, temos exemplos quotidianos disso nas escolas, no trabalho. 

Que relatos vos chegam?

Dizemos que integramos bem no trabalho. Integram-se bem no trabalho pessoas que vêm do leste, onde os salários são menores ainda, trabalhos precários. Quando se diz que em Portugal há quem não queira trabalhar, há quem não queira trabalhar nas condições que lhe são impostas. Há pessoas que nos dizem que várias vezes bateram à porta e a resposta é “depois contactamos”, e nunca contactam. Não dizem que é por ser negro ou brasileiro. A questão do racismo não é só quando toma dimensões desta natureza explícita, o grande perigo é quando está subterrâneo. 

Completou 20 anos à frente da Cáritas. Gostava de continuar ou pensa em passar a pasta?

Acho que estamos nos lugares, não somos os lugares. A partir de determinada altura é bom para as instituições que haja essa renovação, e talvez 20 anos justifiquem a renovação. O meu mandato termina no final do ano e logo se verá. O que não queria era deixar de ter espaço para lutar por estas causas. 

Em 1999, quando foi nomeado, pensou que as dificuldades do país levariam tanto tempo a resolver?

Não. Vamos publicar agora um caderno com propostas que ao longo dos anos fizemos aos sucessivos Governos e que não foram acolhidas, e que eram propostas que não oneravam assim tanto o Orçamento do Estado, mas não tiveram acolhimento. Muitas vezes gostávamos que a democracia participativa fosse mais acolhida por parte de quem tanto a defende. Não é uma eleição para uma assembleia legislativa que pode esgotar toda a capacidade de decisão. O Parlamento tem de ter a visão de estar atento aos sinais que a sociedade portuguesa vai dando e isso faz-se também através das instituições que representam os cidadãos e que deviam ter um papel nas decisões.

O lóbi da Cáritas não é eficaz?

O nosso lóbi é emitirmos a nossa posição, que é acolhida ou não acolhida, mas reconhecemos que há outras forças na sociedade portuguesa muito mais decisivas. A Cáritas, como outras instituições, têm uma vantagem que devia ser levada em conta que é estar muito próximo das pessoas, espalhada de norte a sul e às ilhas. E digo-lhe uma coisa: se não fossem instituições como a Cáritas, que existem em Portugal, infelizmente, hoje não estaríamos a falar de risco de pobreza de 20%, mas de muito mais. 

Quanto mais?

É difícil quantificar, mas somos uma almofada muito grande. Não é de longe uma proposta mas, no campo da imaginação, era um dia pararem estas instituições todas e perceberíamos os défices na sociedade portuguesa.

É um dos mandatários do pedido de referendo e escreveu uma carta aberta aos deputados contra a despenalização da eutanásia, dizendo que o fazia não como católico, mas como cidadão. O que o levou a intervir?

Acho que a vida, como diz a Constituição, é inviolável. Os cuidados paliativos têm de ser mais difundidos e é preciso criar condições para que não haja tanto individualismo mas mais consideração pelo outro, para que as pessoas não se sintam um peso. Já fui protagonista disto. Tive um cancro, estive à beira da morte e não me recordo de dor nenhuma, injetavam-me o que era necessário. Num ano fui operado seis vezes e o hospital incomodava-me, o estar ali preso, embora fosse muito bem tratado por toda a gente. Quem me aliviava? A família e os amigos. A presença dos outros, as cartas que me escreveram, eram fundamentais. E foi isso que quis dizer na carta aos deputados: que condições é que estão criadas para apoiar os cuidadores que ajudam estes doentes para terem tempo de pausa e recuperarem energia, que respostas existem? Havendo ainda possibilidades de dar mais às pessoas, penso que é uma maneira simplista de resolver o problema. Alguém se preocupa com o sofrimento de quem está há dois anos à espera de uma consulta de especialidade? Pessoas com défice de visão por uma catarata, hérnias, coisas até simples? 

Porque defende que devia ser feito um referendo?

A minha adesão ao pedido de referendo é diferente: não acho bem que os dois maiores partidos não tenham colocado a questão no programa. É para se devolver, em termos democráticos, a palavra ao eleitorado. Mas há outra razão que também me levou a escrever: tenho feito muitas vezes apelos para que, perante determinados temas, houvesse pactos de regime – a saúde, a pobreza. As pessoas deviam esquecer as ideologias e, mesmo que a metodologia ou estratégia fosse contra aquilo que querem, aceitar ir progressivamente a caminho de um ideal. Há muita coisa em aberto no país e que não tem tido esta coesão. Espero que os deputados tenham tido a coragem de assumir a sua liberdade individual. Receio que alguns, para não desiludirem o líder e comprometerem numa próxima legislatura a sua continuidade, possam ter votado contra a sua consciência.