Com um oceano a separar-nos, e uma gota de cinismo à mistura, assistimos à agitação que tem provocado a paródia de Natal do coletivo Porta dos Fundos na sociedade brasileira com uma certa inveja. Deste lado, onde a indignação é uma coisa teatral e passageira, um entretenimento funesto que revela como já ninguém se choca, dá uma nostalgia infame da Idade Média.
Há muito que a profunda religiosidade do Brasil fascina e assusta. Também – e com a licença das entidades que legislam sobre os limites da decência nesta matéria – tem feito muito pelo riso. Com o seu garridismo desesperado, a mitologia brasileira embriagou-se em excesso, ao ponto de se comover com as suas bizarrias, envergando-as com um orgulho feroz. E estas têm um efeito quase alucinatório para quem olha de fora. A própria história daquele país parece só aguentar e engolir as suas tragédias ‘tomando porre’. Nelson Rodrigues assinalava essa espiritualidade quase viciada, notando que “o brasileiro, inclusive o nosso ateu, é um homem de fé”. E ainda acrescentou que “a fé do brasileiro assume as formas mais imprevisíveis e, até, cómicas. Ao menor pretexto emocional, aquele ateu de papelão há de acreditar até em Papai Noel.” De resto, mostrando que não era imune ao encanto das demonstrações de fé, o soberbo cronista escreveu isto num outro texto: “Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf”.
Num país que faz da fé a sua consolação, e vê o mundo cheio de deuses, mesmo para não ver outras coisas, é natural que a indignação ali seja como uma prova de nobreza de caráter. E o próprio Nelson Rodrigues se arreliava muito com o “problema religioso”, vendo como “os valores da vida” estavam a apodrecer. “A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o Papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.”
Neste filme, o coroinha é uma gandaia que teve o mérito de formar um batalhão nas traseiras, catar cacos e afiar flechas, reunindo desde há sete anos um arsenal estupendo e promovendo um cerco que conseguiu forçar as portas do humor e alcançar uma difusão que vai bem para lá das fronteiras nacionais. O vigor da operação parece dever-se justamente a um certo ar de bandalheira criativa, à falta de uma hierarquia muito clara. Os membros deste clube de comédia virtual foram extremamente eficazes, sobretudo pela capacidade de irem à boleia e alentarem a estroinice que reina nesse tão volúvel território. Enquanto as regras do jogo estavam a mudar, estes comediantes revezavam-se escrevendo, realizando e representando numa vaga imparável de rábulas de alguns minutos, disparando em todas as direções, alvejando tudo o que mexesse.
E agora, depois de terem vencido o prémio de “melhor comédia” nos prémios Emmy Internacional com o especial de Natal (Se Beber, Não Ceie) de 2018, regressaram este ano com outra média-metragem que, se não parecia capaz de registar um grande abalo na escala da hilaridade, contou com o maior efeito de promoção ao despertar a fúria dos grupos religiosos. E teve ainda o mérito de enfiar na mesma arca evangélicos e muçulmanos, tendo sido posta em marcha uma petição a exigir que o filme de 46 minutos seja retirado, que reuniu perto de dois milhões de assinaturas. Intitulado A Primeira Tentação de Cristo, este entrou na grelha da Netflix, no passado dia 3 de dezembro, e além de ter batido o recorde entre os conteúdos mais vistos no serviço de streaming naquele país, conta com um impressionante palmarés no que toca a pedidos de censura na justiça brasileira. Há dias, o Folha de S. Paulo contabilizava já sete ações intentadas por igrejas cristãs que, além da censura do filme, pediam indemnizações. Das sete, seis tinham já sido negadas. Entretanto, uma série de deputados ligados a bancadas religiosas, para lá do repúdio e das críticas à produção, mobilizaram-se para boicotar o serviço de streaming, encorajando os seguidores a cancelarem a assinatura, e estão agora empenhados em dar à Porta dos Fundos o seu maior golpe publicitário. Querem levar a equipa responsável pela média-metragem a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, e alegam que o “vilipêndio religioso” do filme ofende a Constituição. “Se não respeitam a fé vão respeitar o poder da lei”, diz um deles, Altair Morais.
É ainda cedo para apreciar o efeito cascata que está a carregar ao colo esta produção, e que irá garantidamente fazer dela um exuberante ícone da liberdade de expressão no país, mesmo que, do ponto de vista artístico não se transforme num clássico capaz de ombrear com A Vida de Brian, dos Monty Phyton – uma clara influência deste especial de Natal, e um filme que, no seu tempo, também chateou à brava as fileiras do conservadorismo cristão.
Depois de dom Henrique Soares, bispo que dirige a Arquidiocese de Palmares, ter dito que já cancelou a sua subscrição da Netflix – questionando como esta, “em pleno tempo de preparação para o Natal do Senhor”, se atrevia a dar “um bofetão no rosto de todos os cristãos” e “cuspir na nossa cara, zombando da nossa fé” – entrou em cena uma associação de juristas muçulmanos – a Anaji – e a Porta dos Fundos viu-se assim em confronto com o que a Folha de S. Paulo classificou como uma coligação ecuménica contra o que veem como “uma horda progressista desprovida de valores ‘família’”.
Em entrevista ao Expresso, Gregório Duvivier, que encarna Jesus no filme, deu relevo à ameaça à laicidade do Estado brasileiro, e lembrou que “existe um lobby evangélico muito, muito forte, pessoas que votam com uma bíblia na mão”. E acrescentou: “Todos os presidentes dos últimos 20 anos, em que se incluem os do PT, tiveram de fazer alianças com os neopentecostais. Ninguém se elege no Brasil sem esses pactos.”
Mas o melhor nesta polémica ficou para o fim. É que há um indesmentível contorno de homofobia na reação dos grupos religiosos a esta paródia em que calha Jesus ser gay. E se eram já abundantes os motivos de risada nesta campanha de censura, o mais interessante é notar que o especial de Natal do ano passado, aquele que ganhou o Emmy, não sendo menos iconoclasta, desfilou sem problema e sem provocar bulício. Assim, e se Jesus na anterior encarnação era um beberrão com mau feitio e propensão para blasfemar, pelo menos era bem macho. Andava metido com Maria Madalena, ao passo que o Jesus deste ano arrasta asa por um tipo que, às tantas, se vem a revelar ser o diabo. “Me entristece perceber que, para muita gente, Jesus ser gay é uma ofensa, quando na verdade é uma característica”, disse Duvivier ao Folha. Antes tinha já reagido à polémica no Twitter, ironizando: “Não pode rir de religião, só de preto, viado e pobre”. Por sua vez, Fábio Porchat, que interpreta Satanás, lembra que “muita gente diz que Jesus é branco, e ele não era. Característica. Mas estamos evoluindo, e a homofobia já é crime.”