Iniciou a sua carreira musical como vocalista e guitarrista dos Toranja em 2001, apresenta-se em nome próprio desde 2007 e tornou-se um dos nomes mais reconhecidos e constantes na música portuguesa. Em entrevista ao i, Tiago Bettencourt fala sobre os concertos que está a preparar na Casa da Música, no Porto, já amanhã, e no Coliseu de Lisboa, na próxima quinta-feira (dia 19), mas também da constante renovação das suas influências.
Este é um regresso aos concertos 360o, quase uma exigência dos fãs.
Dos fãs, mas também da própria equipa que organizou o primeiro concerto, que deu um certo trabalho e gosto também. Depois de o concerto acabar, no ano passado, ficámos todos com muita pena de só acontecer uma vez. Propus voltarmos a fazer e eles disseram: “’Bora lá!” Como o último concerto estava relacionado com a estética do disco anterior [A Procura, 2018], não fazia muito sentido lançar mais um disco e fazer outra vez este concerto. Tinha de ser marcado rapidamente, por isso decidimos arriscar. Marcámos também a Casa da Música, no Porto, onde nunca tínhamos ido. E aqui estamos.
Quando foi a primeira vez que assistiu a este conceito de concerto, num formato 360o? Quando decidiu adotá-lo?
Acho que nunca vi aqui um concerto ao vivo em 360o. Vi vídeos, lembro-me que o [António] Zambujo fez, os Capitão Fausto e o Tim também. Mas, ao vivo, nunca assisti, por isso não tinha grandes referências.
Sente que este é o melhor formato para se apresentar ao vivo?
Depende um bocado do álbum que estivermos a promover. Como o último álbum era um bocado mais calmo, não era um concerto para se fazer no palco grande do Coliseu, era para ser num sítio mais intimista. Podíamos ter ido para o São Luiz, mas tentámos replicar esse ambiente neste 360o. Se calhar, se não houvesse este formato não tínhamos vindo para aqui, mas isto permite-nos criar um ambiente mais intimista enquanto temos cá muita gente.
Alguma vez ponderou fazer uma tour no mesmo formato que o Bob Dylan na Rolling Thunder Venue, em que apenas tocou em salas mais pequenas?
Isso é o que nós fazemos, nenhum artista em Portugal não faz isso. Continuamos a tocar em auditórios maiores, outros mais pequenos. Há auditórios que simplesmente não têm capacidade para ter lá uma banda, nem dinheiro para ter um PA para suportar o som que às vezes expelimos. Mas faz parte da vida de um músico em Portugal, fazer este percurso de auditórios, especialmente no inverno. É um passo normal, não é um passo em frente nem um passo atrás.
Como artista, tem preferência entre tocar em espaços abertos ou espaços fechados?
É diferente, não tenho preferências. Se ficarmos muito tempo a fazer auditórios apetece-nos fazer palcos maiores, se fizermos palcos maiores apetece-nos fazer um concerto mais intimista… os palcos permitem coisas diferentes: num palco grande não podemos tocar coisas demasiado calmas, senão o público dispersa um bocado; conseguimos fazer isso, mas não durante muito tempo. Um palco pequeno permite fazer versões só de guitarra e voz durante 20 minutos que toda a gente adora. Acho que, ao longo dos anos, criámos um repertório que dá para se adaptar a todo o tipo de palcos.
Recentemente apresentou o primeiro single do novo disco, Trégua, onde introduz um novo som, mais energético.
O último álbum era mais calmo e espacial, e acho que ao longo desta tournée precisávamos de renovar o repertório para palcos maiores. Alem disso, entrou para a banda um guitarrista muito bom, o Pedro Branco, e pela primeira vez desde os Toranja tenho dois guitarristas; por isso, naturalmente, as guitarras estão a chegar-se mais para a frente e as músicas estão a sair mais enérgicas.
Para além das guitarras também se destacam uns teclados mais dançáveis. Surgirá isso de uma influência da cena moderna indie de Lisboa?
Não diria que seria de Lisboa, eu ouço música moderna desde há muito tempo, não sou aquele gajo que se fecha a ouvir as mesmas coisas que ouvia há 20 anos. Comecei a ouvir música mais eletrónica há dois álbuns, onde começas a ouvir mais sintetizadores. Neste álbum, eles também estão um bocado mais cá para a frente, influenciado pela banda sonora do Drive ou do Stranger Things. O que está a acontecer é que estou a trazer de volta as guitarras a este universo, uma vez que tinham desaparecido em prol destas influências eletrónicas. As eletrónicas não estão a desaparecer, temos lá drum machines e sintetizadores, mas temos um bocadinho mais de guitarras.
O que tem ouvido e que o tenha influenciado em particular?
Uma banda que ando a gostar imenso de ouvir é Big Thief. Também estou a ouvir muito Miguel Andrade, é muito bom, gosto imenso. James Blake é sempre uma grande influência, o novo álbum da FKA Twigs [Magdalene] está muito bom e o boygenius da Julien Baker [projeto que junta Lucy Dacus e Phoebe Bridgers] foi algo que também ouvi imenso. E o novo álbum do Liam Gallagher [Why Me? Why Not.], que também trouxe de volta o rock. Consegui vê-lo no ano passado em Nova Iorque e foi incrível. O novo álbum do Manel Cruz [Vida Nova], que é sempre uma influência gigante. Tenho ouvido imenso Nils Frahm, Sufjan Stevens, que acompanho há imenso tempo, e Tobias Jesso Jr., que é um bocado colado a Beatles mas tem umas canções muito bonitas.
O que podem esperar os fãs de diferente neste concerto?
Já não vamos estar tão colados ao último álbum. Passaram três anos desde que saiu e já não estamos colados à sua promoção. Vamos ter um alinhamento que vai atravessar toda a minha discografia. E vou fazer algumas surpresas, e vão ser concertos diferentes em Lisboa e no Porto. Gostava muito que acontecesse uma flashmob com a dança que gravámos no videoclipe do novo single [Trégua], por isso, agora nos próximos tempos, vamos lançar alguns conteúdos mais estranhos para promover esta interação [entretanto, foi lançado um tutorial em vídeo com Rodrigo Guedes de Carvalho a dançar a música].
E para além da Trégua, vai haver mais músicas do novo disco?
Acho que não. Vamos ter uma canção que toquei pela primeira vez no último concerto no Coliseu, que se chama Manhã e que vai estar no próximo disco. Não gosto que saiam cá para fora músicas novas e que as pessoas filmam e se tornam a primeira referência, há sempre mudanças em estúdio. Quero que o primeiro impacto seja um pouco mais controlado.
Vai ter convidados neste concerto?
Nunca se sabe. No ano passado não convidei ninguém e gostei muito. [risos] De repente ficou muito na moda convidar toda a gente. Sempre fui um artista que tinha muitos convidados, mas agora sinto que é quase mais especial a coisa acontecer sem convidados. Mas nunca se sabe o que vai acontecer até dia 19.
E vai haver tempo para covers? David Bowie tem sido uma das mais pedidas.
No ano passado fiz uma cover no piano [de Absolute Beginners]. Se viu muita gente a pedir, se calhar tenho mesmo de fazer. [risos]
E a Canção do Engate do Variações?
Essa tem mesmo de ser, é obrigatória e continua muito viva. O público adora covers, está cada vez mais preguiçoso e adora ouvir músicas que já conhece, daí o sucesso dos programas de karaoke que dão na televisão. As pessoas gostam de ouvir versões novas das músicas que já conhecem e foi um bocado por isso que deixei de fazer versões de músicas que já existem, porque já percebi que sempre que faço uma versão, a coisa ganha sempre uma certa viralidade. Prefiro fazê-lo com canções originais.
Estou a perceber que não é fã desse tipo de programas de televisão.
Eh pá, não, não sou. Uma vez fui convidado para ser júri dos Ídolos e achei piada, é engraçado estar lá, realmente há miúdos muito talentosos, os jurados são pessoal porreiro que já conhecemos e, por isso, é giro, mas se eu incentivo um artista a passar por lá? Só se tiver uma personalidade artística construída porque, se não tiver, aquilo é um bocado uma fábrica de clones e é aí que está o perigo. Aquilo é principalmente um programa de televisão, muito mais do que um programa sobre música ou um programa artístico. Para se estar na televisão tem de se ser televisivo, tem de se dar audiências, tem de se dar drama, e um artista não é sempre isso. Um artista tem momentos completamente diferentes e, por mais que consigas falsear um momento íntimo num The Voice, é muito difícil isso ser verdadeiro, porque já vem de não sei quantos ensaios onde dizem quando se deve olhar para baixo, quando se pentear ou quando olhar para a namorada. Muito raramente existe um momento genuíno nesses programas. Pronto, há aquele lado bom de divulgar imensos miúdos que fazem música, mas, agora, que música é que vão fazer… é um bocado estranho, e vê-se a qualidade da música a descer de uma maneira absurda e a música que realmente é boa e que está a ser feita em Portugal tem muito pouca audiência quando comparada com a música má.
Voltando a falar de concertos, essa música que descreve como má está associada a concertos mais grandiosos…
Acho que tem de haver espaço para tudo, não sou contra isso, acho é que tem de haver mais espaço para artistas diferentes… tens artistas portugueses a fazer música muito boa, mas que realmente não conseguem sair do mesmo sítio porque o espaço está todo ocupado por esses artistas espalhafatosos. Artistas que são mais empresários que artistas: sabem promover-se bem, sabem fazer vídeos. Hoje em dia, tudo é imagem, se és um artista à antiga e não tens jeito para isto vais ficando para trás. Hoje em dia, não tem só a ver com a música, hoje tem muito mais a ver com a imagem, é muito mais difícil fazer as pessoas desligar desse mundo.
Numa altura em que muitos espetáculos ao vivo se caracterizam pelo excesso, a apresentação do Tiago é muito simples e despida. Como consegue fugir a essa regra?
Já vem de trás, comecei a fazer isto muito antes das redes sociais; se calhar, se tivesse começado agora, não ia ter sucesso. Tenho a sensação de que fazer a música que faço hoje em dia não é fácil, mas tenho vindo a construir um público desde há muito tempo, que continua a vir aos concertos, que passa palavra e passa a música a uma geração mais nova. Não é fácil, é um trabalho contínuo.
O seu público já atravessa gerações. Sente que teve de se adaptar a uma audiência diferente?
Fui-me adaptando naturalmente. Nunca deixei de ouvir música nova e, por isso, acabo por também ser um bocado produto das coisas que tenho vindo a ouvir. Os meus músicos também são mais novos que eu e trazem outras influências. Acho que grande parte dos erros que se fazem hoje em dia é tentar fazer música que seja igual a qualquer coisa que já está a acontecer. Fez-se isto, depois copia-se aquilo. Normalmente, isso é a receita para uma música finita, de um artista que vai desaparecer. Tem de se arranjar um caminho próprio.
Se calhar, bandas como AC/DC ou os Motorhead, que usaram sempre as mesmas fórmulas ao longo da carreira, não se safavam hoje.
Eles fizeram isso, mas também apareceram numa altura em que mais ninguém fazia aquilo. Hoje temos muitos imitadores dessas bandas. São opções, tal como muitos outros artistas que adoro, mas que estagnaram e ficaram aquilo. Se é atual o que os AC/DC fazem? Claro que não. Mas que continua muito bom, continua. Pode-se levar um miúdo de 20 anos que ele, claro, vai curtir o concerto. Acho que não há problema, mas simplesmente não sou esse tipo de artista. O Peter Gabriel, que foi evoluindo ao longo da carreira, o Beck, que vai mudando de um lado para o outro – sou mais esse estilo. No meu repertório há músicas estupidamente calminhas como há muito rock‘n’roll, e é isto desde sempre, desde os Toranja. É o que me é natural.
Já passou por alguns dos maiores palcos de Portugal, o que falta ainda fazer? A Altice Arena é um objetivo?
Falta que me convidem para tocar num Primavera ou num Paredes de Coura, falta ir à Altice Arena, mas não acredito que a minha música vá chegar a esse ponto. Falta a nossa língua ir mais longe sem ser só com o fado. Acho que falta Portugal ter mais orgulho naquilo que faz. Faz falta não ter de ser alguém com sotaque inglês a dizer “this is very good” para as pessoas pensarem: afinal, isto é bom. Portugal continua a não saber exportar a própria música e não há plataformas nem orgulho suficiente para isso. Por isso é que é muito difícil sairmos daqui.
Deve ser frustrante para um artista português com uma carreira tão longa como a sua. Acaba por se cair numa rotina ao pisar sempre os mesmos palcos.
Faz parte, mas já tive mais vontade. Hoje já tenho uma vida mais calma e, por isso, nem me apetecia ficar a fazer tournées por aí além, mas houve uma altura, nos meus 30 e poucos, que me agoniava imenso não conseguir sair daqui. Temos as portas fechadas em todo o lado, até no Brasil que, supostamente, devia ser mais fácil, mas os brasileiros não querem saber de música portuguesa, estão-se marimbando. Só o fado é que se safa porque entra no circuito da world music, que é completamente à parte. É por isso que há muitos artistas que dizem que são fado só para entrar nesse circuito. Agora, eu não passo por fado.