27 de novembro de 1967. A Aldeia das Quintas desapareceu Tejo abaixo…

27 de novembro de 1967. A Aldeia das Quintas desapareceu Tejo abaixo…


Dos seus 156 habitantes, morreram ou desapareceram mais de 80 durante a tempestade que assolou a região de Lisboa na noite de 25 para 26. O total de mortes atingiria os 700. Salazar mandou funcionar a censura a partir das 200: “A partir de agora, não morre mais ninguém!” Mas nem a mentira conseguiria parar…


Aldeia das Quintas. O lugar onde a fúria dos elementos resolveu cair sem qualquer justificação. É assim: a natureza não passa cartão a ninguém. A apenas três quilómetros de Vila Franca de Xira, ficou como emblema máximo da destruição das cheias de 25 para 26 de novembro de 1967. Dos seus 156 habitantes, mais de oitenta morreram ou desapareceram no caos de água e lama e destroços que o Tejo arrastou em direção a jusante.

Casimiro Vicente: morto. Ele, dois filhos, os sogros, duas cunhadas. Uma família dizimada. Quantas pessoas morreram ao certo em Aldeia das Quintas? “Contamos os vivos. É mais fácil”, soluça Francisco José André. “Deus me perdoe. Mas sabe-se lá. Contamo-nos uns aos outros”. Perdeu 11 elementos da sua família mais próxima. Águas assassinas. O céu não perdoa: vomita sobre o Ribatejo, sobre Lisboa, cordas absurdas de chuva cerrada. Nada nem ninguém está a salvo desta raiva de repente desencadeada e que os ventos açoitam numa cumplicidade indecente.

O Instituto de Medicina Legal, junto ao Hospital de São José, não fecha as portas. Os cadáveres vão chegando como encomendas de um deus enlouquecido. Em Santa Maria há corpos de crianças ainda por identificar. Onde estarão as mães e os pais que as procuram? Noutra morgue? Ou ainda alimentando esperanças ténues?

Derrocadas e explosões, telecomunicações cortadas, linhas de caminho-de-ferro obstruídas, centenas de milhares de pessoas sem transporte, sem fuga possível, prejuízos materiais incalculáveis. Um jornal grita de desespero: “Nunca se viu nada assim desde 1755!” Dezenas e dezenas de câmaras-ardentes vão-se erguendo a cada hora. Um manto negro de luto invade o país triste.

Os bombeiros de Vila Franca de Xira montam guarda nos portões do cemitério. À espera da morte às catadupas. Da Aldeia das Quintas vêm tantos. Freguesia da Castanheira. O lugar, perdido numa cova, transformou-se num poço. Um poço que engole gente. A Marinha surge com os seus barcos de borracha, força passagem para os sítios onde a vida parou por completo. As estatísticas começam a ser bombardeadas. A estatística da senhora da gadanha: Urmeira, 15 mortos; Odivelas, 52; Loures, 21; Queluz-Belas, 10; Bairro Limítrofe da Povoação de Quintas, entre 70 a 90. Mais e mais e mais vão-se somando. No final do dia 26, o total ia em 223. Chegaria aos 700.

Contou-se, mais tarde, que perante o explodir da tragédia, Salazar mandou a censura atuar em força: “A partir de agora, não morre mais ninguém!” Ordem quase divina, convenhamos. Quintas servia de exemplo. O exemplo mais cru de um acontecimento terrível. Alguém escreveu: “Quintas não deverá desaparecer do mapa. Pelo menos que nos mapas figure um sinal negro em seu lugar. Bem negro. De luto profundo”. Belas palavras, mas já não havia consolo para o qual as palavras servissem. Uma dor infame.

Um garoto procurava por debaixo dos destroços. Chamava em voz rouca: “Avô! Avô!” Um homem, perto dele, apontou para um sítio indefinido: “Talvez ali, debaixo daquele monte de mato…” Vizinhos cruzavam-se com vizinhos e a pergunta era sempre a mesma, à laia de cumprimento: “Quantos te morreram?” E a resposta era invariável: “Não sei. Ainda não sei…”