Há os que o ditam ao tabelião, que o faz passar pela frieza do crivo jurídico. Há os que o preferem cerrado, porventura mais sentimental, e depositado em cartório notarial. E há Vasco Graça Moura, que não fez segredo do seu testamento, dado pela primeira vez a público em 2002 – ainda o poeta não completara 60 anos – e cujas disposições de última vontade, muito arredadas das formalidades da lei, pretendiam produzir os seus efeitos bem antes da data da morte, que viria a ocorrer a 27 de Abril de 2014.
Ali se apresentava sumariamente e despido da ambição de uma posteridade canónica, mesmo porque a posteridade nunca fez parte da sua agenda de urgências: “nem muito ás nem muito tolo”. Ali se dirigia aos seus contemporâneos. Não para afirmar primazias ou reclamar uma memória perdurável, mas para manifestar um irónico descaso pela reputação póstuma, parodiando, ao avesso, Jorge de Sena e o célebre “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”: “citei autores, pois que me citem, / ou me distorçam, ou crocitem,/ me esburguem todo em fim de festa/ mas acrescento mais um item / e nada deixo a quem não presta”. Sempre passou Graça Moura ao largo do diagnóstico da ansiedade das influências, trocada pelo prazer das referências.
A redacção do “testamento de vgm” teve início em territórios improváveis: um bloco de notas, a base de um pacote de cigarrilhas, suportes pouco ajustados à solenidade de uma tal “escritura”. E impressionava, desde logo, pelo gesto de quem ensaia um adeus, entregando à posteridade o último elo de uma cadeia de livros que haveria de estender-se até a “Os Lusíadas para Gente Nova” (2012), seguidos de “Retratos de Camões”, postumamente publicados. Inicialmente tirado a apenas 250 exemplares numerados e assinados pelo autor, chegou acondicionado em caixa de cartão, espécie de invólucro destinado a acomodar um corpo textual lúdica e humoradamente dinamizado pela ideia da morte própria, sempre mantida à distância da retórica trágica e da contemplação melancólica, e à qual o poeta-tabelião então acenava de longe com provocações de humor gelado.
É escusado buscar aqui o poeta de lirismo meditativo recuando perante as tentações confessionais de propensão biográfica; aquele que escreveu “a sombra das figuras”, “instrumentos para a melancolia” ou “uma carta no inverno”, para nomear apenas alguns dos livros que contêm, provavelmente, a melhor poesia de VGM. E também não se achará neste testamento a sua ironia discreta, trocada por modos agrestes, desabridos, por uma linguagem mordaz e mesmo obscena. Nem o tom elegantemente desprendido que marca boa parte da poesia do autor e nos faz apreciar a subtileza de pensamento de um homem culto e de refinado gosto que se movia na vida com esmerada educação. Mas nele reconheceremos certamente o estilo “mordaz mordendo” que assistia o cronista de “Os Nossos Tristes Assuntos”. Mesmo aquele leitor mais familiarizado com o trabalho poético de Graça Moura (e com a sua ampla paleta de tons e registos) terá experimentado uma certa perplexidade diante de um tal volume. A crítica, avessa à nudez confessional, aos tons do humor negro, e mal impressionada com a “balada do bom cavaquista”, ali incluída, começou por vê-lo como uma espécie de anomalia no seu percurso literário. Convém lembrar que este livro, que parecia comprometer um certo estatuto de respeitabilidade erudita, desenvolve e alarga os contornos de uma auto-imagem aparentemente pouco zelosa da sua reputação e da sua posteridade literária.
Composto à maneira de Os Testamentos de François Villon, o maldito que traduzira poucos anos antes, e apresentado em versão bilingue, o “testamento de vgm”, tal como os do poeta francês, não tem como ponto de arranque a iminência pressentida da morte, que então ainda não figurava no retrovisor (para aludir a um título bem significativo da sua obra ficcional). Nem, em boa verdade, existe para dispor de outros haveres que não o pecúlio de vivências de um escritor de experiência múltipla, poeta e homem político guiado por um projecto de cultura que o animaria ao longo de 50 anos de vida literária.
Na sua clara textura biográfica, este testamento, espécie de encenação de uma ausência, é, paradoxalmente, um livro que leva longe quer o sentido do fingimento, quer o programa poético que resumida e metaforicamente se anuncia no poema de abertura do seu primeiro livro, “modo mudando”, que justamente se caracteriza por uma espécie de sobre-exposição do poema («exponho a ferida ao ar sem protegê-la / para que infecte e frutifique”), o qual tudo pode integrar, até o próprio autor, essa “supreme fiction”, para usar a fórmula de Wallace Stevens, um dos autores que, não integrando embora o catálogo dos mestres que “pastou” (com questionável discrição), ocupa nele um lugar não propriamente desprezível.
Desde o primeiro verso, o testador-tabelião apresenta-se em primeira pessoa como um homem à beira de completar 60 anos, um “duplo trintão”, ocasião para, com irónico despojamento, volver dessa altura da vida um olhar ao caminho andado: “fiz uma longa aprendizagem,/ muitas rasuras e rascunhos,/muitos registos de passagem,/ muitos borrões e gatafunhos/ são outros tantos testemunhos/ do meu mester, das minhas lavras,/ uso a cabeça e às vezes punhos/ de renda ou não. ah, as palavras!”
Funcionando contrastivamente com a seriedade habitual em ocasiões do género, as deixas testamentárias de encadeamento sucessivo, a revelarem o comprazimento deliciado no jogo verbal que a poesia também é, contemplam família, amigos, e não esquecem o (eterno) feminino, contemplado nas musas que o acompanharam. Sequer as casas editoras, referidas em extensa e metódica enumeração, e a quem deixava um bom saldo a fazer mal caíssem os seus livros num qualquer armazém. Os inimigos – tratados com inclemência e acutilância ferina – também não ficam para trás: “a esses deixo toda a merda/ com que quiseram atingir-me/ e ao deixá-la digo a rir-me/ «comei-a toda agora a cru,/ que a digestão vos seja firme/ e ao fim lambei o próprio cu»”. Ao desbragado Villon, matriz deste testamento em edição bilingue, com tradução francesa do próprio autor, deixa a forte hipótese de um embate bem medido: “hei-de encontrá-lo onde quer que erre,/ já feito em pó, igual a mim,/ ele a dizer de baudelaire/ eu de camões e bernardim,/ fale em rimbaud, cito-lhe assim/ cesário, sena, alguns ingleses./ tiste mas culto seja o fim/ de marginais e de burgueses.”
Ao leitor coube em sorte um retrato poético cheio de espessura existencial em face do qual se levanta uma interrogação difícil de solucionar: onde termina o fingimento da vida e começa a verdade da ficção?