O protesto de ontem tinha sido organizado por sindicatos, mas foi dominado por uma organização “sem rosto”. As t-shirts brancas, as mochilas pretas, os apitos ruidosos e as pulseiras destacavam-se na mancha de polícias e militares que desfilou entre o Marquês de Pombal e a Assembleia da República. Os adereços faziam parte do kit promovido pelo Movimento Zero na sua página de facebook ao longo da semana.
O grupo anónimo, descrito pelo ministro Eduardo Cabrita como “forças sem rosto”, tomou o pulso ao protesto dos polícias, e até a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP) e a Associação dos Profissionais da Guarda (APG/GNR), as estruturas mais representativas de PSP e GNR, organizadoras da jornada de luta, viram-se forçadas a deixar todas as decisões nas mãos de desconhecidos. A influência do Movimento Zero foi evidente desde o início: a chegada dos primeiros manifestantes à rotunda do Marquês de Pombal deixou a nu, desde logo, um desequilíbrio de forças, que foi crescendo ao longo do dia. Ainda no Marquês, a mancha branca aumentava a cada minuto. Numa zona recatada do Parque Eduardo VII, junto à rotunda, o vaivém de polícias denunciava algo fora do comum que, pouco depois, não foi mais possível disfarçar: junto a um quiosque, três membros do Movimento Zero vendiam t-shirts com o logo do grupo, a cinco euros. Não possuíam ligações à polícia, diziam, e desconheciam, ou alegavam desconhecer, de quem ou de onde vinha todo aquele material. Num ápice, a maioria dos manifestantes pareciam ostentar algum elemento identificativo do Movimento Zero. E muitos foram os que ficaram aborrecidos por chegar depois de se esgotarem as t-shirts.
Sindicatos abrem-se ao movimento
Ao i, o presidente da ASPP, Paulo Rodrigues, desfiou as exigências repetidas nos últimos dias e que serviram de base a este protesto: o aumento dos salários, o pagamento dos suplementos e melhores meios de trabalho e de segurança. Mas o que sempre foi evitado pelos sindicatos, acabou ontem por ter de ser admitido. Paulo Rodrigues “abriu as portas” ao grupo anónimo que, por aquela altura, já controlava totalmente a manifestação: “O Movimento Zero somos todos nós”, afirmou.
O dirigente sindical desvalorizou assim as declarações de António Nunes, presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), que havia classificado o aparecimento deste grupo, criado por elementos das forças de segurança descontentes, como algo “preocupante” e potencialmente “perigoso”. Paulo Rodrigues admitiu “a imprevisibilidade” do movimento, mas retirou “peso” ao perigo que este pode representar, acrescentando que se trata apenas “de um conjunto de pessoas, que são polícias, mas também que são familiares de polícias e cidadãos comuns e que se identificam com as reivindicações”.
No início da semana, o email enviado por uma autointitulada “Comissão de Polícias pela dignidade e dignificação da Polícia”, dirigido aos delegados sindicais de PSP e GNR, acusava o Movimento Zero de ter ligações a movimentos de extrema-direita e ao partido Chega, de André Ventura. Esta nota poderia, eventualmente, indiciar alguma divisão entre fações no seio das forças de segurança. Mas as palavras de Paulo Rodrigues pareciam mostrar um alinhamento total.
Cidadãos solidários com os polícias
Segundo o Movimento Zero, participaram no protesto 13 mil pessoas, entre polícias, familiares e cidadãos. Uma estimativa otimista, tendo em conta os dados avançados ontem pelos sindicatos, que apontavam para oito a dez mil manifestantes.
O que mais chamou a atenção, durante o protesto, foram algumas manifestações de carinho e apoio de que foram alvos os polícias ao longo da sua marcha, que ligou o Marquês de Pombal à Assembleia da República. Em varandas, nos passeios ou empoleirados em muros altos para ver e filmar, foram muitas as pessoas que saíram à rua. E desde acenos e abraços a beijos houve de tudo um pouco. Houve cabeleireiras que deixaram as clientes à espera para, efusivamente, saudarem os manifestantes; palmas ininterruptas de famílias inteiras; idosos sentados em cadeiras, nos passeios, com cartazes de agradecimento às forças de segurança. E a cada um destes cenários foi surgindo uma resposta dos polícias e militares.
André Ventura, o “superstar” As polémicas grades e barreiras de cimento, que rodearam a Assembleia da República, para conter uma possível invasão – a exemplo do que aconteceu há precisamente cinco anos, a 21 de novembro de 2013 –, não foram sequer colocadas à prova. Os manifestantes diziam que queriam passar uma imagem de “paz”, criando uma área de segurança a dois metros das barreiras, e mostrando compreensão por aqueles que se encontravam do “outro lado”, os colegas em serviço. Durante a tarde foram comuns os cumprimentos entre polícias em serviço e os que se manifestavam, o que fez transparecer em diversos momentos um clima de união.
Em São Bento, CDS-PP e Chega foram os únicos partidos a descerem a escadaria para falar aos manifestantes. A reação à presença do deputado do CDS-PP, Telmo Correia, não foi a melhor. De forma ruidosa, os polícias fizeram saber ao deputado centrista que não era bem-vindo ao local e não o pouparam a apupos e insultos. O regresso do deputado ao parlamento foi quase imediato.
Uma receção totalmente diferente teve André Ventura. Envergando uma t-shirt do Movimento Zero, o deputado do Chega foi recebido de forma eufórica pelos manifestantes, confirmando, assim, a ligação ideológica e afetiva entre o grupo anónimo e as ideias que Ventura tem vindo a defender.
Gritou-se “Ventura, Ventura!” e “Chega!, Chega!”. E o deputado foi convidado a subir ao palanque e discursar aos presentes, afirmando que “os polícias unidos jamais serão vencidos!”
“Hoje não queriam que aqui estivéssemos, montaram barreiras, mas não vão conseguir calar e derrotar os polícias. Viva a polícia! Viva Portugal!”, concluiu, conseguindo uma enorme ovação. Perante o clima de insatisfação, os deputados do PS e do PSD, que já o haviam anunciado, mas também os das restantes forças partidárias, escusaram-se a aparecer para dar uma palavra aos manifestantes.