Diogo Ayres de Campos é secretário-geral da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia e dirige o serviço de obstetrícia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que no próximo sábado será palco do exame europeu de obstetrícia e ginecologia, um passo para uma avaliação mais ampla das competências médicas com uma prova prática em que, além das dimensões técnicas, se avalia a capacidade de comunicar com os doentes ou de ensinar os mais novos. Em entrevista ao i, o médico fala sobre as preocupações de uma área que, por cá, tem estado no centro do debate público. Depois do sucesso do país na melhoria dos indicadores da saúde maternoinfantil, alerta para o desinvestimento e falta de planeamento de recursos humanos.
O caso do bebé Rodrigo motivou uma discussão em torno do poder disciplinar da Ordem dos Médicos, mas também da competência dos médicos e da qualidade dos exames feitos no país. Estamos perante um caso excecional ou um sintoma de um problema maior?
Penso que neste caso, e com os dados preliminares que temos, parece ter havido um erro grosseiro. Sendo um caso excecional, não quer dizer que não haja alguns aspetos a melhorar na forma de organização dos cuidados obstétricos.
Foram conhecidos outros casos associados ao mesmo médico. Sentiu-se confortável ao perceber que havia tantos processos pendentes na ordem?
Naturalmente que me senti desconfortável como obstetra e como secretário-geral da federação por haver tanto atraso. Pior do que haver uma decisão negativa é não saber o que se passa. Dito isto, não podemos partir do princípio de que todas as situações são erros grosseiros. Há malformações que não são detetáveis em ecografia. A confirmar-se tudo o que tem sido descrito sobre este bebé, não é o caso, mas malformações cardíacas, mesmo nos melhores centros a nível mundial, detetam-se 60%. Estando perante o que parece ser um caso de erro grosseiro, penso que se extrapolou dando ideia de que as ecografias detetam tudo e que, de cada vez que não se deteta alguma coisa, há um erro.
A Sociedade Portuguesa de Obstetrícia alertou ainda assim que há ecografias do segundo semestre a serem feitas por médicos sem qualificações e a ordem anunciou que será criada uma competência específica. É necessário?
Isso acontece, mas não acho que seja um problema generalizado. A grande maioria das pessoas que fazem ecografias são qualificadas. Até aqui havia o reconhecimento de uma aptidão. Penso que uma regulamentação mais objetiva é fundamental, mas o essencial é que os critérios sejam aplicados e que exista fiscalização. O problema é que por vezes somos excelentes a estabelecer critérios, mas não os aplicamos.
Uma questão que também se levantou depois deste caso prende-se com a qualidade dos ecógrafos. Nesta área, como estão os equipamentos no SNS?
Os ecógrafos, na maior parte dos hospitais públicos, são de qualidade intermédia. Todos os equipamentos médicos têm ciclos: compro um ecógrafo topo-de-gama, é excelente durante cinco ou seis anos; depois, aos sete/oito anos começam a aparecer equipamentos com imagens melhores. Neste momento, aqui, estamos com ecógrafos bons, mas não tem havido um grande investimento na área obstétrica no SNS e acredito que haja muitos hospitais onde a qualidade já não é a melhor.
Tem havido suficiente sensibilidade das administrações e da tutela?
Algumas administrações têm mais sensibilidade do que outras. O problema da falta de investimento é transversal. Tem havido menos sensibilização e na área obstétrica, em particular, criou-se um bocadinho a sensação de que as coisas estavam resolvidas, que temos muito bons indicadores e, por isso, não é preciso investir mais. Acaba por se investir pouco em manutenção, nos espaços, nas pessoas. E isso tem consequências, na saída para o privado, por exemplo.
O verão ficou marcado pela falta de obstetras e anestesiologistas nas maternidades de Lisboa. Foi um período difícil de gerir?
Foi um verão difícil e a situação continua difícil. Enquanto os problemas nas instalações, às vezes, conseguimos resolver, a contratação não se resolve de um momento para o outro.
Continuam a ter escalas incompletas, dias em risco de fechar as admissões?
Escalas incompletas, sim. Não tem acontecido fechar, o que acontece é, quando se excede um determinado número de pessoas nas salas de parto, transfere-se para outro sítio. Felizmente, não tem havido nenhuma situação em que não exista nenhum hospital para transferir.
Todos os dias há transferências?
Em Santa Maria não estamos em contingência todos os dias, mas estamos um grande número de dias. Diria que todos os dias, na região de Lisboa, há um ou outro hospital que tem de transferir grávidas. Isto acaba por contrariar o pressuposto de que as pessoas devem poder escolher onde têm os filhos. Está na lei mas, na prática, não se verifica sempre.
Como reagem as famílias?
Algumas de uma forma muito negativa, dececionadas. Não quer dizer que as expetativas não possam ser realizadas noutro hospital, mas todos os princípios de poder conhecer o hospital, a equipa, tudo isso é posto em causa.
Princípios de partos mais humanizados…
Tem havido um esforço no sentido de humanizar os partos, mas tem de haver equipas adequadas. Quando um médico faz três urgências por semana, ao final da terceira, a capacidade de empatia é reduzida. Sem ovos, as omeletes são difíceis de fazer.
Que medidas são necessárias?
Penso que é necessário assegurar condições mínimas. Houve uma altura em que os hospitais tinham o seu quadro de pessoal bem definido. Hoje é tudo feito não se sabe muito bem com base em quê. Os critérios que são usados para decidir que o hospital A tem 20 obstetras e x enfermeiros e o B tem 40 não são claros.
As equipas não estão definidas?
São feitos cálculos tendo em conta a produção, o número de atos médicos, mas mesmo essa relação entre o número de atos médicos e o staff não é hoje algo muito claro, o que faz com que haja hospitais que têm um staff grande, provavelmente justificado, e outros com um staff muito pequeno e que não percebem porque têm pouca gente. Seria preciso estabelecer regras e um enquadramento, planear os quadros. Senão, o problema repete-se: os hospitais que estão já resvés, quando vem a altura de férias, verão e Natal, estão no limite dos limites e começam a descompensar.
Ouvem-se há vários anos alertas para a falta de recursos e de planeamento. O que tem demorado soluções? Os serviços acabarem por funcionar?
O problema é que, às vezes, esse funcionar é “olhe, vou enviar todas as grávidas para o seu hospital”. Ninguém morreu, não aconteceu nenhuma tragédia. Corremos o risco de um dia acontecer uma tragédia por causa disso. Aqui em Santa Maria há dias em que temos 15 partos, há dias em que temos três, não é algo programável.
O receio é que num dia em que haja um pico possa não haver resposta?
Se coincidir em vários hospitais, tenho receios de que possa haver problemas.
Nesse caso não podem transferir as grávidas para o privado?
Neste momento não temos autonomia para enviar grávidas nem sequer para as parcerias público-privadas, o que penso que é uma questão muito mal esclarecida, como há outras. Estamos a competir com a procura de médicos no setor privado e com as próprias PPP, que pagam mais. Acabamos por estar a competir connosco próprios. Tem de haver regras mais claras sobre os quadros necessários e depois dar-se alguma autonomia para os hospitais contratarem e não estarmos meses à espera que saia um concurso em Diário da República.
Faltam quantos médicos no serviço?
Faltam-nos sete médicos para o departamento. Estamos atados, não conseguimos contratar, apenas recorrer a prestações de serviço à hora. A nossa única arma é sermos um hospital universitário, o que faz com que algumas pessoas queiram vir para cá por causa do ensino, da investigação, da carreira académica. Agora, imagino um hospital mais pequeno… Até podemos ter um ambiente positivo, mas isso não é grande argumento quando, ao lado, se paga duas vezes mais.
Nos últimos meses foi conhecido um ligeiro aumento da mortalidade perinatal e materna. Será também reflexo de se ter descurado esta área?
No caso da mortalidade materna, penso que temos de analisar a situação num período de cinco, dez anos. São números pequenos. Já, de facto, a mortalidade perinatal (entre as 28 semanas de gestação e os sete dias de vida) tem aumentado, quando estava em queda desde os anos 60. É algo que começa a preocupar-me porque pode traduzir um pouco o que vemos no terreno, uma menor capacidade de alguns serviços de se organizarem, por falta de material e de pessoas, para dar resposta.
A que tipo de situações?
Situações relacionadas com a prematuridade ou ocorrências intraparto, durante o trabalho de parto. Não é não serem feitos os procedimentos, mas a capacidade para interpretar e agir em conformidade. Em muitos hospitais temos muito menos pessoas do que tínhamos há dois, três anos. Se há menos pessoas e muitas situações ao mesmo tempo, pode ser mais difícil ter níveis de excelência.
Liderou a Comissão para a Redução da Taxa de Cesarianas. Os últimos indicadores também não são muito positivos: depois de anos a baixar, em 2018, a taxa aumentou pelo segundo ano consecutivo, para 28,5%.
Penso que poderá ter tudo a ver com o mesmo: equipas reduzidas, com menos experiência.
O setor privado continua a ter o dobro da taxas de cesariana. O que falha?
Durante a vigência da comissão conseguimos tomar medidas para o SNS, foram criados incentivos para reduzir as cesarianas. Nunca se conseguiu implementar medidas no privado. Tem de haver fiscalização. Da parte do público, a cesariana também continua a ser vista como algo mais confortável, moderno, não se conseguiu transmitir a ideia de que não é mais segura e tem riscos.
Algumas complicações podem estar a passar despercebidas?
Quando há complicações graves, ainda que raras, as senhoras são transferidas para os hospitais públicos. Existe uma perceção do que se passa, mas as complicações acabam por ser registadas nos hospitais públicos. Ainda assim, penso que nunca se transmitiu de uma forma muito clara que na obstetrícia conseguimos avanços enormes mas não existe risco zero, seja na deteção de malformações, nas cesarianas, no parto normal. Se recuarmos 80 anos, uma em cada 200 mulheres que engravidavam morria. Reduzimos isso mais de 100 vezes, mas o risco não é zero.
Essa imagem mais cor-de-rosa da gravidez intensificou-se? Como era quando começou?
Na altura, já era um bocado assim. Começo em 1991, a ecografia tinha aparecido uns dez anos antes e já havia um bocado aquela ideia de que com as ecografias íamos conseguir identificar tudo. Mas quando comecei era ainda uma área misteriosa. Dava uma certa ideia de que uma sala de partos era um sítio onde a ciência não entrava. Fazia-se as coisas por rotina, por ritual, havia episiotomias a torto e a direito e hoje conseguimos reduzir bastante. A epidural entrou no São João em 1997. Até aí, uma pessoa, uma vez por semana, entrava na sala de partos e ninguém sabia muito bem o que se estava a passar. Havia senhoras aos berros, alguém dizia “vamos fazer uma cesariana” e fazia-se. Hoje, os procedimentos estão muito mais bem estabelecidos.
Alguma vez apanhou uma mulher que não gritasse sem epidural?
Apanhei várias senhoras, mulheres em período expulsivo e que estavam serenas. Isto não é nada de científico, mas a minha perceção é que seria uma experiência semelhante a entrar em transe. Muitas vezes tinha a experiência de não me responderem, o que pode ser um mecanismo de lidar com uma dor extremamente forte. A partir do momento em que começamos a conversar e a envolver o lado mais racional, as pessoas passam a ser mais sensíveis à dor.
Sendo homem, nunca teve dificuldade em relacionar-se com o momento?
O facto de não ter tido as dores do parto não me impede de ter tido dores de outras coisas. Se calhar, se tivesse passado por isso tinha outra visão, mas também há pessoas que, por terem passado por uma situação ou doença, acham que têm as respostas todas, e as coisas não funcionam da mesma maneira para toda a gente. Fui para obstetrícia por um lado pelo desafio, todos os partos são diferentes, e acabei por especializar-me nos cuidados intraparto. E também porque, depois de passar pelas diferentes áreas médicas, apercebi-me de que, pessoalmente, lidava mal com os desfechos negativos.
O exame deste sábado abrange as diferentes dimensões do médico. Qual é o objetivo desta certificação?
Quem confere o título de especialista são os colégios de especialidade dos diferentes países, que estão unidos na União Europeia de Médicos Especialistas. Em algumas especialidades, estes exames europeus começaram há muitos anos – na anestesiologia, há mais de 20. Na obstetrícia começámos há quatro anos a fazer este exame. Tem uma componente teórica e depois a parte prática, que é a que tenho estado a coordenar e que este ano vai ser feita em Santa Maria.
Os candidatos são internos?
São internos do último ano ou já especialistas que querem ter o título europeu. Não é obrigatório, mas é um percurso que tem estado a ser feito. O que acaba por ser interessante neste exame é, de facto, uma avaliação das competências de uma forma mais abrangente. Posso saber muito e ser um mau médico, não saber comunicar ou não conseguir fazer cirurgia como deve ser.
Hoje, o exame da especialidade assenta apenas na parte teórica?
Inclui uma avaliação do currículo ao longo dos seis anos do internato e depois existe um exame oral. Neste exame europeu, a avaliação dessa parte prática acaba por ser mais objetiva, vemos os médicos a fazer uma cirurgia num simulador ou a fazer uma entrevista a uma doente.
Faria sentido o exame nacional passar a ter essa componente?
É um exame caro, temos de contratar atores profissionais e recorrer a simuladores, pelo que fará mais sentido centralizar numa organização europeia, mas a mensagem é que as competências médicas não se avaliam apenas em perguntas de escolha múltipla ou exames orais. Avaliamos a forma de colher a história do doente, de transmitir más notícias ou como os médicos são capazes de ensinar os mais novos. Faz-se a recriação de uma situação de emergência em que é preciso trabalhar em equipa e avalia-se também uma questão muito importante que é o diálogo com o doente: hoje, um médico não pode dizer apenas que vai fazer isto ou aquilo, tem de saber comunicar, quantificar riscos.
É um contributo para uma medicina menos paternalista?
Penso que temos conseguido evoluir, talvez lentamente, mas é esse o sentido.
Há muitos médicos que não teriam passado nesse exame?
Hoje é mais fácil sermos objetivos nestes aspetos, há uma maior exigência. E mesmo pessoas que, espontaneamente, possam não ter esta sensibilidade ao fazer o exame ficam mais despertas. Faço este exame há quatro anos e tenho visto como pessoas dos diferentes países reagem de formas diferentes, também para nós é uma forma de aprendizagem.
Mudou-o em alguma coisa?
Penso que aquilo em que me modifiquei mais foi na comunicação de más notícias. Aqui em Portugal, sobretudo nos anos 90, éramos péssimos a transmitir más notícias, às vezes até iludíamos as pessoas. E isto começou a ser valorizado muito com a experiência norte-americana, com a noção de que é preciso dizer as coisas de uma forma muito clara para que as pessoas possam lidar com todas as fases da doença. Com esta experiência assisti a várias formas de comunicar e cheguei à conclusão de que, para mim, dizer logo de forma muito objetiva logo à partida, esse murro no estômago, não será a forma mais correta. É preciso ser claro, mas ter sensibilidade até para com culturas diferentes, e isso é especialmente relevante em Lisboa, onde existe um grande multiculturalismo. Estou mais sensível a isso, às diferentes expressões.
A valorização dessas competências não devia começar no acesso ao curso?
Acho que beneficiávamos todos, também porque o curso sai caro, se pudéssemos avaliar algumas destas soft skills à entrada do curso – não partindo do princípio de que quem não as tem nunca as vai ter, mas até para perceber certas competências técnicas. Por exemplo, pessoas que não têm um controlo motor muito fino poderá não fazer sentido seguirem cirurgia. Algumas formas que hoje permitem avaliar estas competências poderiam ser usadas à entrada da especialidade e até do curso. A questão passará sempre por pesar os custos e os benefícios de ir por aí.