Conversas gravadas.  Má gestão dos utilizadores ou abuso das empresas?

Conversas gravadas. Má gestão dos utilizadores ou abuso das empresas?


A pergunta tem dividido especialistas, mas há um conselho unânime: leia bem os termos de utilização antes de instalar qualquer aplicação.


Quantas vezes já falou de alguma coisa com os seus amigos e depois lhe apareceu na internet um anúncio relacionado com a sua conversa? Ficou com a ideia de que o seu telemóvel está à escuta? É bem possível, apesar de ser difícil provar. O primeiro conselho é ler muito bem os termos e condições de todas as aplicações que instala. Até porque há especialistas a defender que a má utilização é uma das principais causas dos problemas apontados às tecnologias.

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“Noventa e nove por cento dos utilizadores são ignorantes. Pelo bem da humanidade, deveria ser exigido um exame de aptidão para permitir a utilização de um smartphone, tablet ou portátil com ligação à internet, como acontece com um motorista quando tira a sua carta de condução”, defendeu no ano passado ao El País Enrique Vidal, especialista distinguido em 2011 pela Sociedade Científica Informática de Espanha. A opinião é partilhada por outros especialistas como Carlos Martínez, professor de programação da Universidade Politécnica de Valência, que garantiu ao mesmo jornal que a culpa não é das empresas. “Não há que atirar a culpa às tecnologias, mas sim formar os cidadãos, entender que a linguagem da internet é básica e que se deveria incluir no programa escolar”.

Já John Borthwick, da Betaworks, não tem dúvidas: a Google e a Amazon estão a usar os seus microfones para nos espiar. Não é de agora que estas empresas, a Apple ou até o Facebook ganharam a fama de “espiar” os seus utilizadores.

Vamos por partes: que a própria Google ouve as nossas conversas não é novidade, até porque a gigante tecnológica já o assumiu. A empresa garante que o processo de revisão e transcrição das gravações serve para “uma melhor compreensão dos idiomas disponíveis”. A resposta surgiu depois de mil gravações terem sido entregues à televisão belga VRT NWS. O problema é que 153 desses áudios foram gravados ilegalmente. E, assim, a Google teve de assumir que os seus funcionários têm acesso às gravações feitas pelo sistema de inteligência artificial Google Assistant. “Parte do nosso trabalho de desenvolvimento da tecnologia de discurso em diversas línguas inclui parcerias com especialistas em linguagem pelo mundo todo que percebem as nuances e sotaques de um idioma específico. Estes especialistas reveem e transcrevem um pequeno conjunto de intervenções para nos ajudar a melhor compreender todos estes idiomas. Esta é uma parte crítica do processo de desenvolvimento da tecnologia de discurso e é precisa para criar produtos como o Google Assistant. Soubemos recentemente que um desses revisores violou as nossas políticas de proteção de dados ao divulgar conteúdo áudio. As nossas equipas de segurança e privacidade foram logo ativadas, estão a investigar o que se passou. Estamos a orientar uma revisão completa das nossas proteções neste espaço para prevenir que desvios como este aconteçam novamente”, lê-se no comunicado da empresa no seu blogue.

Também a Apple e a Amazon escutam conversas dos utilizadores, sempre com a justificação de, tal como a Google, melhorarem o assistente de voz. Uma investigação recente do Guardian revelou que colaboradores subcontratados da Apple chegam a ouvir conversas privadas através da Siri, algumas de cariz sexual, o que pode resultar de ativações acidentais. A Apple admitiu que uma pequena amostra aleatória de ativações deste assistente, menos de 1% dos pedidos diários, são analisados, sob anonimato, para melhorar o sistema.

Haverá uma escuta deliberada? Quem já trabalhou na Google garante que as coisas não se processam desta maneira. O i entrou em contacto com uma ex-funcionária da gigante tecnológica que preferiu não ser identificada e que descarta a hipótese de espionagem: “Uma empresa como a Google não comprometeria a sua integridade em algo descrito como espionagem”, garante. Mas avisou que não poderíamos esperar grandes revelações da sua parte, até porque “é um assunto muito sensível” e que cada trabalhador da empresa “sabe exatamente o que precisa de saber para a sua performance”.

A ex-funcionária defende o método de trabalho da Google, garantindo que no que diz respeito a pesquisa, keywords, publicidade ou até personalização de contas, “está tudo discriminado nos termos de segurança e privacidade”. O problema é que há muitos utilizadores que não leem estas informações, garante.

Avisa ainda que é preciso ter cuidado com algumas aplicações: “O mais assustador, hoje em dia, são as aplicações como a Siri, o Google Assistant ou a Alexa”, destaca, deixando um exemplo: “Quando uma aplicação pede autorização para aceder a contactos, microfones ou câmaras, é preciso avaliar se essas autorizações fazem sentido, qual é o seu propósito. E depois podem sempre avaliar o consumo e a atividade que essa aplicação tem e quando acontece – se aquando da sua utilização ou não”. Para esta ex-colaboradora, o que é preciso é atenção aos detalhes, até porque “a informação está toda à nossa frente. Depende de nós dar-lhe a devida importância e fazer as nossas escolhas mediante os nossos valores. Por parte destas empresas, nada está a ser escondido”.